O simples ato de sair do carro gera complicações inimagináveis para quem não é deficiente
O simples ato de sair do carro gera, para mim, complicações inimagináveis para quem não é deficiente. Já telefonar, mandar e-mails e fazer análise dentro dele estão na minha rotina
Saí de uma palestra no começo da noite de sábado e, com meu motorista, fiquei procurando um lugar para estacionar, com a intenção de escrever este artigo no carro.
Fomos aproximando o carro de um café e ele brecou em frente a um restaurante para engatar a ré. Foi suficiente para três manobristas avançarem no carro e tentarem insistentemente abrir a porta como se fossem arrancar a maçaneta. Quando esses homens são treinados, eu imagino que a determinação seja: “Abra, abra, abra, abra...”. Curioso, nunca vi uma mulher nessa profissão.
O que eles não sabem é que preciso deixar meus braços apoiados para meu equilíbrio, e o direito está sempre na porta. Quando conseguem abrir, eu simplesmente caio pra fora. Os funcionários dos serviços de vallets ficam desesperados comigo gritando e tentam me devolver dentro do veículo, tipo quando empurramos a porta do armário lotado para a bagunça se esconder lá dentro. O rapaz fica mais desconcertado ainda do que quando esticam a mão para me cumprimentar e eu não correspondo (essa cena é cotidiana na minha vida). Geralmente procuro aliviar a angústia das pessoas, mas de vez em quando gosto de desconcertar. Outro dia, um mocinho esticou a mão para mim, e um amigo meu soltou: “Nossa, que gafe você deu!”. E eu ainda completei: “Nunca mais vou esquecer disso”. O menino enrubesceu com a boca aberta e a mão trêmula parada no mesmo lugar durante uns 30 segundos.
O motorista sempre ajeita a cadeira de rodas na posição adequada para me transferir e, quando me tira do carro nos braços, o funcionário do vallet corre e muda a cadeira de lugar grudando-a na perna do motorista, que fica estático comigo no colo sem conseguir nem me pôr na cadeira nem voltar.
Assim como estou escrevendo este texto, faço muitas outras coisas no carro. É o meu lugar predileto para despachar, fazer telefonemas, responder e-mails e outras “cositas mais”... Fico bem acomodada, o cenário não para de mudar, por isso às vezes o trânsito me faz bem! Outra coisa que faço no carro é análise. Estacionamos próximo ao prédio do consultório, o motorista e minha assistente descem, e o terapeuta entra. Pois é, eu faço psicanálise “de van”. Ele deve me perceber tão autossuficiente que várias vezes sai do carro, bate a porta e vai embora. Como o carro é alto e tem os vidros escuros, ninguém vê que ele saiu. Aí fico chacoalhando a cabeça e berrando para tentar chamá-los. Até que paro e tento me concentrar no conteúdo da análise, enquanto não se tocam.
Fala, ouve, enxerga?
Atitude paradoxal acontece com minhas assistentes. Quando dizem que cuidam de uma tetraplégica, as pessoas perguntam: “Ela fala? Ouve? Sente cheiro? Entende? Enxerga? Tem menstruação? Dorme sentada? Pode ter filhos? Serão cadeirantes?”. Ficam perplexas de eu ter os quatro membros e ficam chocadas quando sabem que tenho namorado. É comum minhas assistentes ouvirem: “Você ainda cuida daquela velhinha?”.
Já a Natália, filha da Gil (assistente), adora brincar de Mara. Ela se finge de Mara e faz as amigas virarem ela na cama, carregarem no colo e alongá-la na piscina. Para ela, brincar disso é alcançar tudo aquilo de bom que a mãe dela faz pra mim.
Mara Gabrilli, 40 anos, é publicitária, psicóloga e vereadora por São Paulo. Fundou a ONG Projeto
Próximo Passo (PPP), é tetraplégica e foi Trip Girl na Trip #82. Seu e-mail: maragabrilli@camara.sp.gov.br