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Coragem, câmera e ação

Seis fotógrafas se encontram para registrar as misérias do mundo

Justyna registrou a vida no mar Cáspio. Considerado o maior “lago” do mundo, ele se tornou pon­­to de disputa depois do colapso da União Soviética. Rússia, Azerbaijão, Cazaquistão e Turcomenistão brigam pela posse de suas águas, que escondem um enorm

Justyna registrou a vida no mar Cáspio. Considerado o maior “lago” do mundo, ele se tornou pon­­to de disputa depois do colapso da União Soviética. Rússia, Azerbaijão, Cazaquistão e Turcomenistão brigam pela posse de suas águas, que escondem um enorme manancial de gás e petróleo


Por Karla Monteiro

em 13 de março de 2009

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Elas vivem pelo mundo, de olho em lugares onde a desigualdade social grita. De seis países diferentes, Justyna, Newsha, Agnes, Marizilda, Lourdes e Benedicte – do coletivo Eve Photographers – fazem parte do mais alto time da fotografia documental

 


 

O encontro se deu por uma simples questão de ângulo. Em dezembro de 2005, o fotógrafo inglês Gary Knight, uma espécie de entidade da fotografia documental, fundador da agên­cia Seven e da revista Dispatches, sen­tou-se na frente de seu computador e dis­parou meia dúzia de e-mails. Ele tinha tido uma ideia: botar em contato seis fotógrafas que passaram por seus workshops. Gary sabia que daquele mato sairia cachorro. Muitas mensagens depois, nasceu o coletivo Eve Photographers. As meninas de Gary des­cobriram que olhavam para a vida com o foco voltado exatamente para o mesmo lugar: a desigualdade social.
Quatro anos depois, o Eve publicou suas imagens nas principais revistas do mundo – além de mostrá-las em ex­po­sições na França, Ucrânia, China, Japão, Camboja e Espanha. To­dos os anos, as fotógrafas escolhem um tema comum. O objetivo é do­cumentar sempre uma questão coletiva primordial. Em 2008, o foco foi água – e elas mergulharam. Cada uma contou uma his­tória de mau uso em um canto do planeta: Nigéria; Indonésia; Brasil; Malauí, na África; mar Cáspio, entre o leste da Europa e oeste da Ásia; e Índia. As fotos – que a gente mos­tra em primeira mão em páginas brasileiras – são dessa última maratona. Os te­mas anteriores foram maternidade e Aids.
As “eve girls” vivem por aí. Encontraram-se uma única vez, em um festival na cidade de Gijón, na Espanha, em 2006. Para manter o coletivo funcionando, fazem reuniões pelo Skype. Be­nedicte Kurzen e Agnes Dherbeys são francesas. A primeira mora na África do Sul e a segunda, na Tailândia. Marizilda Cruppe é a brasileira da turma, vive no Rio. Lourdes Segade nasceu na Es­panha. Justyna Mielnikiewicz é polonesa, radicada na Geórgia. E Newsha Tavakolian é do Irã, mas perambula pelos países do Orien­te Médio e da Ásia. No caldo cultural do grupo, como diz Gary Knight, reside o segredo desse bem-sucedido blind date.

Justyna Mielnikiewicz, 36
Justyna nasceu na Polônia, em 1973. Mas, desde 2002, vive na Geórgia. O fim da União Soviética e as guerras que vie­ram depois são influências marcantes no seu trabalho. “Fotografar é uma maneira de entender a forma como você própria enxerga as coisas ao seu redor”, diz. “Não estou certa se meu trabalho contribui para um mun­do melhor. O que procuro fazer é contar histórias que me importam. E rezo para que importem aos outros também.” Como freelancer, Justyna trabalha para as melho­res publicações do mundo, entre elas The New York Times e Newsweek. Mas diz que começa todos os meses sem certeza alguma de que vai conseguir pagar as contas. E essa instabilidade virou seu combustível. “Faço qualquer trabalho como se estivesse fotografando pela primeira vez”, conta a polonesa, que tem uma teoria sobre a diferença entre homens e mulheres na fotografia. Segundo ela, a única distinção é que meninos gostam mais de equipamentos do que meninas. De resto, disputam em pé de igualdade as imagens da vida: “Nunca me senti particularmente em perigo por ser mulher. Quando estou fotografando conflitos, me arrisco com todas as ou­tras pessoas que estão na cobertura”. Recentemente Justyna ganhou uma cicatriz no rosto, conquistada durante os recentes conflitos na Geórgia. “Bo­ba­gem”, desconversa ela, sem querer falar do assunto.

Dentro do tema água, Newsha focou o Estado de Bihar, na Índia. Quase tão sagrado quanto o Ganges, o rio Kosi é chamado de rio do sofrimento. Durante o período de chuvas, ele varre vilarejos e mata centenas de pessoas ao longo do seu curso. Tudo por c
Dentro do tema água, Newsha focou o Estado de Bihar, na Índia. Quase tão sagrado quanto o Ganges, o rio Kosi é chamado de rio do sofrimento. Durante o período de chuvas, ele varre vilarejos e mata centenas de pessoas ao longo do seu curso. Tudo por causa do assoreamento

Newsha Tavakolian, 28
A iraniana Newsha Tavakolian nem chegou aos 30 anos e já pode ser considerada uma veterana da fotografia. Co­me­çou a trabalhar na imprensa do Irã com 16 anos. Em 2002, iniciou sua peregrinação documental por lugares como Iraque, Líbano, Síria, Arábia Saudita, Paquistão e Iêmen. Suas fotos estão em revistas como Time e Newsweek e jornais como The New York Times e Le Figaro. “Se você consegue mu­dar a vida de uma pessoa, o trabalho já pode ser consi­derado bem-sucedido”, diz. Sua última em­preitada foi, digamos, em causa própria. É tra­dição entre os mu­çulmanos empreender, pelo menos uma vez na vida, uma via­gem a Meca. Ela conseguiu uma permissão para fotografar por lá e pegou a estrada. “Parti carregada”, conta. Um dos tios a presenteou com um colar de contas. A prima costurou um ves­ti­do branco, cor usada em Meca. E um ou­tro tio deu a dica preciosa: “Não empurrar nun­ca, mesmo quan­­do me sentisse sufocada pela multidão”. O resultado é uma viagem espiritual contada em imagens. O fato de ser mu­çul­mana e mu­lher, se­gundo Newsha, não mu­da seu tra­balho. E diz que o Eve a ajudou a en­ten­der que gente é tudo igual: “Tra­ba­lhan­­do com mu­lheres de lu­ga­res tão diferentes percebi que somos muito parecidas. Apesar de geo­graficamente localizadas em lugares tão distintos, partilhamos as mesmas ambi­ções e pai­xões”.

Há dois anos o vulcão Merapi jorra o equivalente a duas piscinas olímpicas diariamente no leste de Java, na Indonésia. O número de vítimas já soma 13 mil. É por lá que Agnes anda embrenhada. Na foto, indonésio observa o que sobrou na vila de Sirin, s
Há dois anos o vulcão Merapi jorra o equivalente a duas piscinas olímpicas diariamente no leste de Java, na Indonésia. O número de vítimas já soma 13 mil. É por lá que Agnes anda embrenhada. Na foto, indonésio observa o que sobrou na vila de Sirin, soterrada por mais uma erupção

Agnes Dherbeys, 32
“Tento ser cautelosa em qualquer si­tu­ação. Os lugares que estou são sempre tensos”, diz Agnes. Pa­ri­si­ense radicada em Bangcoc, a moça trabalha no Nepal, Ti­mor Leste, Camboja e Tailândia. E, de vez em quando, no Oriente Mé­dio. Começou a fotografar em 2001, quan­do se mudou para a Tailândia. Em 2004, embrenhou-se na cobertura do tsu­nami e pegou a onda da fotografia do­cu­mental, seguindo por um ano a vida dos so­breviventes de Phuket, a ilha mais a­tin­gi­da. O trabalho lhe rendeu vários prê­mi­os. Ironicamente, ela não estava segurando a câmera no mo­mento mais tenso que viveu. “Em 2003, na minha primeira cobertura em Gaza, nosso carro bateu de frente com o dos militantes do Ham­mas, que fugiam de um atentado”, lembra. “Tudo é po­ten­cialmente pe­rigoso.” Agnes só não gosta de sexismo. “A ú­ni­ca vez que me meti em encrenca foi pelo fato de ser des­cen­dente de asiáticos e não por ser mulher”, dispara. “Quando rolou a onda de protestos dos tibetanos, fui presa no Nepal porque pen­saram que eu era do Tibete. Mesmo com carteira de jornalista e passaporte fran­cês, fui levada. Os policiais nepaleses não são muito educados”, brinca. Agnes diz que aprendeu uma lição. Ou qua­se: “Preciso me manter quieta nos protestos. Mas as situações que presencio são tão passionais que talvez eu aja da mesma forma da pró­xima vez”.

Marizilda escolheu a polêmica transposição do rio São Francisco para falar de água. Na foto, um acampamento de sem-terra em Juazeiro, na Bahia. O único acesso dos trabalhadores à água é um canal que desvia um pedacinho do Velho Chico para uma fazenda
Marizilda escolheu a polêmica transposição do rio São Francisco para falar de água. Na foto, um acampamento de sem-terra em Juazeiro, na Bahia. O único acesso dos trabalhadores à água é um canal que desvia um pedacinho do Velho Chico para uma fazenda improdutiva

Marizilda Cruppe, 40

Brasileira do interior de São Paulo e criada na baixada fluminense, Marizilda Cruppe só tinha um medo na infância: o pai perder o emprego. O fantasma da desigualdade a apavorava. Hoje, ela continua assombrada com as diferen­ças sociais. Seu grande projeto é destrinchar a Declaração Uni­versal dos Direitos Humanos. “Uma única pessoa ou fa­mília tem os seus direitos feridos em vários artigos. É um tema para a vida”, diz. Mari começou a fotografar por acaso. Cur­sou engenharia mecânica e queria ser piloto de avião. Como não ti­nha grana para bancar a empreitada, arrumou um emprego no jornal O Globo. E lá se apaixonou pela fotografia. Há 14 anos no jornal carioca, ela trilhou um longo caminho pelo “hard news” até descobrir o que queria: documentar – e não simplesmente registrar. “Queria ser invisível para me aproximar mais da re­a­li­­da­de”, comenta. Trabalhando Brasil afo­­­­ra e tam­bém com passagens por Índia, Co­­lôm­­bia, Congo, Antártida e outras prai­as, re­cen­temente ela figurou entre os 100 fo­­tó­grafos escolhidos por uma revista ja­po­­ne­sa para registrar o dia da posse de Ba­ra­ck Obama. O material vai virar livro e exposição itinerante. Entre os seleci­o­na­dos estavam nomes como o do inglês Mar­tin Parr. E as propostas não param. Mas Ma­­­ri­zilda é virginiana. Perfeição é o li­mi­­te. “Que­­­ro so­fisticar mais meu traba­lho. Para isso, preciso de mais tempo nas histórias.”

Pela primeira vez em nove anos, a mulher da foto, também moradora das redondezas do rio Shire, no Malauí, retorna ao lugar onde foi atacada por um crocodilo quando enchia baldes de água. Este rio tem 402 quilômetros de extensão e suas águas são funda
Pela primeira vez em nove anos, a mulher da foto, também moradora das redondezas do rio Shire, no Malauí, retorna ao lugar onde foi atacada por um crocodilo quando enchia baldes de água. Este rio tem 402 quilômetros de extensão e suas águas são fundamentais para a sobrevivência do povo local

Lourdes Segade, 31

A espanhola Lourdes Segade, de Bar­ce­lona, trabalha para jornais como The New York Times, Internacional Herald Tri­­bu­ne e Chicago Tribune. E faz qualquer ne­gó­­cio por uma foto. Até deixar o na­mo­rado sozi­nho numa viagem romântica. No iní­cio do ano passado, Lourdes embarcou com Margué rumo a um famoso lago no Ma­lauí, um canto inóspito da África. Três dias antes de voltar para ca­sa, ouviu falar de uma mulher que havia sido feri­­da por um crocodilo. Com o aumento da po­lui­ção, os bichos não têm o que comer, então devoram seres humanos que dependem da água do rio Shire, o principal do país, para sobreviver. “Fiquei louca, estava justamente começando a trabalhar no tema água”, diz. Daí em diante, Lourdes empreendeu uma aventura. “Eu tinha co­migo apenas uma lente de 35 milímetros”, lamenta. Assim, percorreu por três dias as duras estradas do Malauí. Para chegar ao hospital, viajou seis horas numa van superlotada. “Des­co­bri que não era uma mulher e sim uma criança de 8 anos que já tinha sido liberada”, diz. No dia seguinte, Lourdes encarou 14 qui­lô­me­tros de táxi-bicicleta em direção à vila onde a menina vivia. E acabou en­con­trando a garota exatamente no Dia Internacinal da Água. A poluição das á­guas do rio Shire, que abastece 20 mil ribeirinhos, tornou-se a história que Lourdes perseguiu em 2008.

O foco de Benedicte, sobre o tema água, é a Nigéria, onde documenta a vida das mulheres do delta do rio Níger e seu cotidiano miserável, triste e extremamente violento
O foco de Benedicte, sobre o tema água, é a Nigéria, onde documenta a vida das mulheres do delta do rio Níger e seu cotidiano miserável, triste e extremamente violento

Benedicte Kurzen, 29
Benedicte nasceu em Paris e vive em Johannesburgo, na África do Sul. O currículo dela não poderia ser mais chique: graduação em história contemporânea e mestrado em se­­­­mi­ó­­­tica pela Sorbonne. A história com a fotografia começou em Israel, onde resolveu viver em 2003. Lá, ela se meteu na Fai­xa de Gaza e passou a cobrir o conflito para as principais pu­blicações do mundo. Entre 2003 e 2005, morou na estrada: França, Israel, Iraque, Egito e Líbano. “Fui mudando dras­ti­camente o meu jeito de trabalhar, da simples fotografia para a documental”, diz. “A transformação aconteceu quando um amigo me deu uma Rol­leiflex e um outro me convidou para participar de um projeto sobre vio­lência contra a mu­lher.” Em 2007, Benedicte se mudou para a África do Sul. O foco dela agora está por lá. Na série “Água”, ela partiu para a Nigéria e documentou a vida das mulheres do del­ta do rio Níger. Se­gundo Be­nedicte, mais de 50 bar­­­ris de óleo são produzidos por ali, mas a popula­ção continua “desespe­radamente pobre” e a vio­­lên­cia e o alcoo­lismo cres­cem sem pa­rar.

Vai lá:
www.justmiel.org, www.agnesdherbeys.com,
www.maricruppe.com,
www.lourdessegade.com,
www.newshatavakolian.com,
www.evephotographers.com

 

 

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