Depois de anos de invisibilidade, uma foto no fundo da gaveta muda tudo
Quando eu era pequena, lembro que havia em casa, numa gaveta cheia de fotografias antigas, uma foto sua dentro de um kart. Você devia ter uns 20 anos, e aquele era o Rio de Janeiro do final dos anos 50. Você estava sentada no kart, com um capacete no colo, e vestia uma calça boca fina, uma sapatilha e uma camisa mais escura. Era tudo preto e branco, então só era possível registrar tons mais claros e mais escuros, mas por algum motivo peculiar minha memória gravou aquela camisa como sendo verde, e é assim que eu a vejo até hoje. Quando alguém se aproximou de você para tirar a foto, você olhou para a lente e sorriu. Havia em seu sorriso uma mistura de amor e segurança e bondade, e isso eu também guardei.
Na primeira vez que você me mostrou essa foto eu quis saber por que você estava num kart, já que nunca tinha visto foto de mãe de amiga minha dentro de um kart, e você explicou que tinha sido convidada para uma corrida e que era a única mulher na prova. Você também disse que havia chegado em primeiro lugar, e não duvidei porque o papai sempre dizia que você era a melhor motorista que ele já conheceu. Claro que ele, que nunca conseguiu aprender a dirigir, até porque tentou apenas uma vez e foi quando fez uma curva sobre a calçada, achava que qualquer um capaz de conduzir um carro por dois quarteirões sem acidentalmente jogá-lo contra pedestres já era um motorista muitíssimo acima da média.
A mulher do kart
Às vezes, quando você não estava por perto, eu pegava aquela foto e ficava olhando para a mulher do kart tentando imaginar como era a vida dela antes de eu existir. Você parecia tão feliz e vitoriosa e poderosa. Talvez devêssemos ter falado mais a respeito dessa mulher, dessa vida, mas a verdade é que falamos pouco, e por isso eu sei pouco sobre você antes de mim, como se você tivesse passado a existir apenas depois do meu primeiro choro.
Eu cresci, e aquela imagem foi para um lugar remoto da minha memória. Mas anos mais tarde, quando você deixou de falar comigo depois de saber que eu era gay, a imagem do kart voltou, e ficou. Nunca soube por que, mas talvez hoje eu consiga entender o que fez minha memória resgatar aquela fotografia.
Durante os anos em que fui órfã, as pessoas queriam saber como eu estava lidando com a exclusão – talvez a maior delas, a exclusão da mãe –, e eu dizia que estava bem. Elas não acreditavam, e eu dava os ombros, sem dizer mais do que “tá tudo bem, juro, não se preocupa”. Porque a verdade é que eu sempre soube que você voltaria e, enquanto eles enxergavam a mãe dura, intolerante e inflexível que escolheu fechar a porta para a filha gay, eu enxergava a mulher do kart.
E a mulher do kart era a mesma que, quando voltei de uma temporada de três meses na Europa aos 17 anos, invadiu a área reservada exclusivamente a passageiros e bagagens no aeroporto de Guarulhos para me abraçar. A mesma que me levou ao Morumbi para ver o Corinthians ser campeão paulista em 1977 sob protestos histéricos do papai, que dizia que era perigosíssimo e inconsequente uma mulher levar uma criança de 10 anos para aquela confusão, a mesma que arrancou pela gola dois adolescentes do paredão do Paulistano quando soube que eles tinham me tirado de lá aos chutes só porque eram muito maiores do que eu e queriam jogar. A mulher do kart, eu sabia, me amava. O fato de eu nunca ter duvidado do seu amor por mim me fez suportar os anos de afastamento.
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Mês passado tive que voltar a morar com você temporariamente. Morar é um colossal exagero, porque, de passagem por São Paulo, fiquei apenas três dias na sua casa. Por motivos de ar-condicionado quebrado no quarto de hóspedes, acabei tendo que dormir em seu quarto, ambiente abençoado com uma dessas máquinas maravilhosas. Você então perguntou se meu objeto de devoção e eu queríamos dormir na cama de casal, dizendo que nos daria a cama e dormiria num colchão no chão. Obviamente dissemos que não, e, depois de jantarmos as três na sala, e de papearmos sobre pratos e mais pratos de macarrão, e taças e mais taças de vinho, lá fui eu dormir na cama de casal com você, enquanto meu objeto de afeto ia para a casa de uma amiga.
Uma ova
Na manhã seguinte, acordei cedo porque era o dia em que partiria, e você já tinha colocado a mesa do café da manhã. Eu estava preocupada com um trabalho que teria que entregar, você quis saber qual era, eu expliquei que precisaria passar a manhã copiando passagens do diário de uma amiga para quem estava escrevendo um livro. “Leva o diário com você”, você disse, e eu expliquei que não poderia correr o risco de perder. Você então pegou o diário, me puxou pelo braço e saímos pela rua em busca de uma birosca que fizesse cópias.
Era um contrassenso, você disse, que eu passasse meu último dia em São Paulo copiando coisas à mão. Expliquei que não acharíamos um lugar às pressas, e que se achássemos ele não copiaria 300 páginas de uma hora para a outra, e você disse: “Claro que vamos achar, não seja chata”.
De fato, depois de irmos a três lugares que não faziam mais cópias, achamos um que fazia. “Só posso entregar às 6 da tarde”, disse a mulher no balcão. Às 6 da tarde eu estaria embarcando, então implorei para você desistir. “Mãe, desse jeito vou ficar sem o xerox e sem a cópia à mão.” “Uma ova”, você respondeu voltando a falar com a moça do balcão. É engraçado como você não abre mão de certas gírias.
Não sei o que você disse à moça do balcão – ou à mocinha, como você gosta de falar –, mas o fato é que agora ela disse que faria o serviço em 2 horas. Eu então expliquei que não me sentia confortável largando o diário, e você falou que ficaria esperando, e recomendou que eu fosse para casa fazer a mala. “Você vai ficar 2 horas aqui sozinha, mãe? Não tem cabimento.” “Não vou ficar sozinha”, você respondeu, “vou ficar com ele”, e apontou para um rapaz que esperava sentadinho. O rapaz fez uma cara meio assustada, e eu pedi desculpas para ele e para a mocinha do balcão e prometi aos dois que levaria você comigo.
Saímos andando pelas ruas do bairro de volta para casa como fazíamos quando eu era pequena. Você já não anda com a mesma desenvoltura de antes, então pedi que fosse devagar para não tropeçar e cair, e ameacei te dar a mão quando a calçada ficou muito irregular. Você desdenhou e quase morreu de rir quando quem tropeçou fui eu. Juntas, chegamos em casa e voltamos para a mesa do café da manhã. O serviço ficou pronto em menos de 2 horas, e eu pude passar minha última manhã em São Paulo conversando com você à mesa do café.
A verdade é que já faz alguns anos que recuperei minha mãe, e, como eu sempre soube que seria, ela é a mesma mulher da foto do kart.
A carioca Milly Lacombe, 46 anos, já exercitou a paixão pelo futebol no SporTV e na Record, como comentarista esportiva. Também já colaborou com diversas revistas e com o portal Terra, mas gosta mesmo é de escrever livros em seu cubículo em Nova York, onde foi passar uma temporada com duas cadelas e uma gata. Seu e-mail: millylacombe@gmail.com