Capítulo 18: Eu sou praticamente um lésbico feminista

por Milly Lacombe

Para deixar um homem muito feliz, basta pedir para ele te explicar alguma coisa. Exceto a lista do mercado. Acompanhe mais um dia na quarentena de desamor de Otávio e Marina

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Quarentena, dia 30

– Onde você vai com esse aspirador?

– Faxinar a casa, começando pelo seu quarto. Tô bem apegado a esse aspirador, Marina. E ao sistema que recolhe o fio dele com o toque de um botão. O fio vem vindo todo zonzo, se batendo nos cantos como um bêbado, mas ele chega e entra na casa dele magnificamente sozinho. Quem foi o gênio que pensou nisso? Acho que a gente não celebra devidamente alguns de nossos heróis

– Não faço ideia, Otávio. Mas você tem toda a razão, ainda que seja um sistema antigo e que você tenha descoberto apenas agora. O cara que inventou isso já deve estar até reencarnando. Te perguntei porque já já eu vou dar aquela entrevista pro jornal, lembra? Te falei ontem. Talvez o barulho do aspirador atrapalhe

– Ah é. Sobre o estrelado restaurante que virou clínica e fonte de refeição para morador de rua. Que puta história linda essa, Marina

– Isso

– Tá nervosa?

– Não. Deveria estar?

– Foi uma pergunta estúpida. Não deveria não. Talvez orgulhosa

– Isso eu tô

– Os sócios já deram a entrevista?

– Estão dando agora e depois disso a repórter me chama. Mas são as sócias e não os sócios

– É que você sempre falou os sócios

– É, mas são três mulheres e eu tô me ligando no meu próprio sexismo linguístico

– Você acha que faz tanta diferença assim? Tipo: esse rigor linguístico

– Se eu acho? Como assim? Faz uma puta diferença sempre que você desinvinbiliza mulheres. Palavras importam, Otávio. Durante quanto tempo a palavra "homem" foi usada como representante de toda a humanidade? E que tipo de impacto isso tem sobre cada uma de nós? Não nomear uma parte enorme da humanidade tem que objetivo?

– Simplificar, talvez

– A autoridade se apresenta sempre como altruísta, né? “Estamos fazendo isso pelo sem bem. Para economizar tempo do seu discurso. Pelo bem de todos precisamos criar a imagem do ser humano universal e ele é um homem branco que se comporta heterossexualmente e de preferência é rico”. O recado é: se você é homem, tenta ser como esse maravilhoso exemplar. Se você é mulher, o ponto alto da sua vida é dar para um exemplar como esse. É um ato de muita violência tornar o outro invisível, Otávio. Mas você não saberia disso porque, como homem cisgênero branco e heterossexual, o mundo te pertence, meu querido. Você nunca passou um dia da sua vida na invisibilidade. Você não é o continente sombrio de Freud. Nós somos esse continente.

– Entendo, Marina. Mas, sei lá, tem tanta coisa pra mudar antes disso. Às vezes acho que deveria ter uma pauta única nessas lutas, sabe? Tipo: a primeira pauta deveria ser a construção de uma alternativa à sociedade capitalista, eu acho isso

– E o que você acha que sustenta o capitalismo dia após dia? Machismo, racismo, sexismo, Otávio. Essas são as bases desse sistema que você considera tão perverso. Eu fico de cara como homens que se dizem marxistas, de esquerda, anticapitalistas como você, capazes de falar por horas sobre como esse sistema vai destruir o mundo, podem realmente achar que essas coisas não são tão importantes. Como não era importante saber onde ficava o aspirador, ou fazer o jantar, ou a lista de supermercado, ou pegar parte dessa carga mental que é sempre tão nossa

– Marina, olha pra mim. Tô de avental porque acabei de lavar a louça e com o aspirador aos meus pés porque tô indo fazer a faxina

– Vamos aplaudir. Vamos erguer estátuas. Uau. Parabéns, Otávio. Precisou uma pandemia para que você fizesse essas coisas na casa

– Bom, mas aqui estou. E tem mais: ontem fiz a lista do supermercado. Preciso agora apenas aprender a pedir as compras online. Tô sendo de grande ajuda, vai

– Ajuda? Ajuda, Otávio? Você acha que tá me ajudando? Se você tá me ajudando, então essas funções seriam minhas e você tá apenas bancando o bacana, é isso? Quem ajuda não precisa pensar, não precisa ocupar a cabeça com essas tarefas, né? Quem ajuda precisa só fazer um pouco e pode ir ver TV

– Desculpa! Não queria usar essa palavra, mas ela saiu e eu vi a cagada assim que ela saiu da minha boca. Já sei que não é ajuda. É apenas parte da vida a dois, ou a três. Izvini! Izvini!

– Izvini?

– Desculpa em russo. Eu acho

– Izvinado, Otávio. Mas olha a situação. Imagina um observador vendo a gente de fora. Vai ver um cara super consciente socialmente tentando fazer faxina e uma chata situando esse fofo no feminismo, dando uma dura nesse cara tão esforçado que só quer limpar a casa, tadinho. Te educar no feminismo não é minha tarefa, meu amor. Um homem que pretende ser desconstruído, um homem que se diz de esquerda, já deveria ter alcançado a gente nessa luta. Cansa pra caralho ter que fazer esse papel, que o mundo ainda rotula de chato porque, né, chata é a mulher que quer demolir um mundo desigual, opressor, repressor, racista, machista; chato não é esse mundo violento. Chato não é o estuprador, mas a pentelha que fica dando dados do feminicídio. Chato não é o chefe que caga regra, mas a pentelha que fica repetindo o discurso dos salários iguais. Então faz teu corre aí pra alcançar a gente nesse debate porque essa luta também é sua. Por um mundo onde todo mundo possa dar o cu livremente sem ser julgado, que tal?

– Esse mundo me interessa imenso, Marina. Um mundo onde homens hétero se deixem penetrar sem acreditar que isso tá diminuindo eles. E onde a próstata seja citada ligada ao prazer e não à doença

– Certíssimo. Mas você vai ter que trabalhar nessa desconstrução, se quiser fazer ela ser pra valer, porque o mundo feminista lá fora vai te engolir vivo se você sair por aí com essas atitudes. Não adianta dar o cu, nem ter um discurso todo socialmente correto sobre os efeitos do vírus se na sequência você mandar um “tô te ajudando” porque tá indo aspirar a casa

– Perto de muitos amigos eu sou praticamente um lésbico feminista

– Se você quiser se comparar ao resto dos homens, de fato você vai se sair mais ou menos bem, mas de esquerdomacho o mundo já tá saturado e a falsa desconstrução se revela nos detalhes

– Tipo?

– Tipo não perceber como o sexismo da língua é violento. Ou… Quer ver? Me diz seus autores favoritos?

– Você sabe quem são: Baldwin, Chomsky, Machado, Eça, Manoel de Barros

– Como queríamos demonstrar

– Não tem mulheres, é isso?

– É óbvio. Quem você já leu? Tô falando de autoras

– Clarice, Bishop! Citei ela outro dia e de cor, porra!

– Além daquele poema, o que mais você leu dela?

– …

– Exato!

– Algum autor trans, autora trans, alguma autora travesti?

– …

– Que outras autoras de bate-pronto?

– …

– Exato! Seu ponto de vista sobre o mundo é formado pelo ponto de vista de outros homens. Vamos para os compositores. Quais?

– Sim, todos homens.

– Pintores

– Tá bom, Marina. Entendi, entendi

– Precisa também trabalhar essa baixa tolerância a mulheres te falando sobre essas coisas, tá?

– Nossa, mas eu tenho altíssima tolerância a isso

– Você acha que tem, mas não tem não. E já que estamos aqui tentando aprimorar sua desconstrução, pode dar uma dimerizada na mania de explicar as coisas para mulheres também

– Ah, isso eu não faço!

– Otávio, meu amor, todo homem faz. Todo. E tira enorme prazer disso. São explicações sem fim sobre o funcionamento do mundo, sobre política, economia, sobre carros e até sobre o feminismo: como a gente deveria lutar, como a gente deveria falar pra se fazer escutar, blábláblá. É tipo um vírus que contamina vocês muito cedo na vida e vocês nem se dão conta do que fazem. Sabe como uma mulher faz para deixar um homem muito feliz?

– A resposta envolve sexo?

– Não. Basta pedir para ele te explicar alguma coisa. Qualquer coisa. O ponto G dos homens é o ponto E. Com um incremento em relação ao gozo genital de vocês: demora mais tempo porque vocês são capazes de sustentar a explicação por horas e horas e horas. Se sustentassem assim os próprios paus talvez pudessem satisfazer a gente de forma mais plena. E que bom que você tá rindo, Otávio. Agora é trabalhar aí essa desconstrução. Eu vou me concentrar aqui na entrevista. Se quiser começar a limpeza pelo meu banheiro eu te aviso se o barulho incomodar quando a repórter ligar

– Já que falamos do assunto, queria avisar que meu querido pinto está curado. Agora partiu banheiro

– Que bom, Otávio. Limpo e funcionando

– Ah, eu queria te falar mais uma coisa. Eu talvez não tenha te dito isso o suficiente nesses anos, mas eu tenho muito orgulho de você, Marina

Esta história continua. Acompanhe os próximos capítulos na Tpm.

Créditos

Imagem principal: Manhã Ortiz

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