Capítulo 17: Por que não ver o mundo como uma maritaca?

por Milly Lacombe

Elas dizem que os dias estão lindos. Que têm conversado com os rios e eles estão mais felizes. Que o planeta está voltando a respirar. Mas nem tudo está vivo na quarentena de Otávio e Marina

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Quarentena, dia 27 

– Eu sinto falta de conversar com você

– A gente tá conversando todos os dias, Otávio. Não tô entendendo

– Conversar coisas que não sejam sobre a gente, conversar sem gritar, sem tensão

– Sobre a gente acho que nem precisa mais, né? Tá tudo dito e conversado. Assim que acabar essa quarentena você se manda e é isso. Quis o destino que quando o fim do mundo chegasse eu estivesse confinada não apenas com a pessoa que disse não me amar mais, mas também com a pessoa que me traiu e que eu nem posso colocar da porta pra fora porque preciso respeitar uma certa ética que não foi respeitada comigo. Vou fazer o quê?

– Tá, Marina. Tá bem. Mas a gente pode falar da vida, como a gente sempre fez

– A fase tá mais pra falar da morte, mas você tá completamente alheio ao noticiário então nem disso podemos. Aliás, toma um spoiler aqui: as notícias são as piores possíveis e você talvez deva saber delas

– Eu realmente não quero saber delas, Marina. Nem sei por que isso te irrita tanto

– Cara, é muita alienação. A gente tá passando por um troço absurdamente bizarro e histórico e eu entendo você se afastar do dia a dia da crise, mas o mundo tá desabando e algumas coisas você precisa saber

– O mundo antes estava super de boas, né? Tudo na mais perfeita ordem

– Claro que não. Enfia teu cinismo na viola, Otávio. Só que agora tá ainda mais caótico e as pessoas estão morrendo às milhares

– E antes não morriam? Não morriam com suas cabeças estouradas pela polícia ou pela milícia, não morriam de dengue e de câncer, de tuberculose e de febre amarela, de fome, de depressão, de abandono, de ausência de políticas públicas, de abortos mal feitos… Antes as pessoas não morriam por culpa desse mesmo estado ausente, negligente, indecente?

– Teu discurso tá no nível “deixa morrer uns aí”. Só falta você me dizer que uns aí têm que morrer pra gente salvar a economia

– Pra salvar alguma coisa ela precisa antes estar viva, e esse não era o caso da tal da economia. Pelo menos não para a maioria das pessoas desse planeta. A economia só estava boa pra rentista e a gente sabe quem são eles, né? Então não precisa se preocupar porque isso aí eu não vou dizer não. Mudando de assunto, eu pensei em descongelar aquele peixe e fazer no forno. Peguei uma receita aqui e vi que a gente tem os ingredientes. Você topa jantar esse arriscado ao forno?

– Topo qualquer coisa para não cozinhar porque tô enrolada aqui com trabalho já que hoje, com tudo o que está acontecendo no Brasil, o dia tá desmoronante

– Eu sei que te frustra eu não querer falar do noticiário, mas eu não acho que o vírus seja o problema e não quero me deixar levar pelo pânico e pelo sensacionalismo que tomou conta da geral

– Você ainda acha que é só uma gripezinha, é isso?

– Podemos falar sobre isso no jantar? Eu preciso ir lá começar a preparação e é o tempo de você acabar aí e tomar um banho

– Sim senhor

Marina toma banho chorando, como faz há alguns dias. A euforia que parecia ter reencontrado depois de um tempo de melancolia, de angústia e de ansiedade tinha ido embora outra vez. A ideia da traição era dilacerante e ela ainda não tinha conseguido sequer conversar com Joana sobre isso, como se, ao verbalizar as palavras, a traição se tornasse a principal história do relacionamento, a principal história da sua vida, a principal história dessa fase tenebrosa da humanidade. Como a história de uma traição mundana podia se fazer maior do que a história da morte da sua irmã? Como podia se sobrepor à história da depressão da sua mãe, de como sua mãe a negou depois do acidente de Raquel, de como seu pai não soube lidar com a filha viva, de como ela teve que sair de casa e se transformar em uma profissional de sucesso para que os pais pudessem quem sabe enxergá-la com algum orgulho e, com sorte, parar de sofrer a ausência de uma pessoa que não se faria presente outra vez – pelo menos não da forma como entendemos e percebemos uma presença. Marina esperava por esse dia desde que a irmã morreu, e esse dia ainda não tinha chegado. E agora uma traição expunha em cores tenebrosas o real tamanho do seu ego. Era sobre ela, então? Era sobre ser amada e desejada? Sobre manter Otávio em suas garras, sob seu domínio e controle? Marina sentiu a água caindo sobre o cabelo, sobre as costas e chorou mais forte. Misturar as lágrimas à água, deixar que a dor entrasse pelo ralo e sumisse dali para que ninguém visse. Saiu do banho sem deixar evidências do sofrimento porque estava disposta a perder o relacionamento, mas não a dignidade: essa ela queria manter intacta e para isso era preciso não se mostrar vulnerável.

– Que banho demorado

– Pequenos prazeres da quarentena. E o peixe?

– Prontíssimo. Posso colocar na mesa?

– Ô

– Abro um branco?

– Pode ser

– O que é isso em cima do peixe?

– Farofa de aveia

– Ousado

– Nem tanto. Muito simples de fazer. Agora vamos ver se tem algum gosto. Te sirvo?

– Por favor

– Brindamos?

– Ao fim da nossa história? Por que não? À traição? A você ser tão cafajeste quanto qualquer outro?

– A nós dois e a tudo o que vivemos juntos, Marina. Zazdarovie!

– O que é isso, Otávio?

– É como os russos brindam. Eu acho. Tô tentando estudar russo on-line

– Quanta disposição. Ioga, russo, meditação… É o homem mais ocupado do mundo. A mesma quarentena que paralisou milhões fez nascer em você uma vitalidade que fazia muito tempo que eu não via

– É. Talvez os introvertidos possam tirar mais proveito dessa fase. É tipo o sonho de todo o introvertido ter que ficar em casa sem socializar

– Ainda mais dos que têm sol ou ascendente em câncer. O inferno de muitos é o paraíso de vocês

– Por que vou viver como inferno o que sempre desejei como paraíso?

– Porque tem milhares morrendo, talvez por isso. Não?

– Vamos lá. Eu não acho que é uma gripezinha. Eu estava errado, Marina

– Um minuto. Me deixa saborear um pouco essa frase. Você estava o quê?

– Eu errei. Eu falei merda

– Pode seguir. Acho que tive um pequeno orgasmo aqui. Quero escutar o resto

– Então. Eu subestimei o vírus. Fica aí com minha confissão. Mas, e agora vem um longo mas, esse vírus não tá aí a toa e não é ele o nosso problema

– Ah, não, Otávio! Não me venha com platitudes. Você não é um cara de platitudes. É um cafajeste como qualquer outro, agora eu sei, mas não é um cafajeste de platitudes

– Deixa eu tentar concluir o pensamento. A gente sabia que uma pandemia era questão de tempo. A ciência sabia disso, os governos sabiam disso, todas as lideranças sabiam disso. Uma pandemia estava no mesmo nível do aquecimento global e de uma guerra nuclear. Ou seja: ameaças reais e iminentes porque, né, a gente trata esse planeta como se fôssemos donos dele. A gente queima, fura, desmata, a gente se acha melhor do que qualquer outro ser vivo, a gente acha na real que o planeta foi criado para servir a gente e que os bichos existem para nos servir de alimento. Nem sei se a gente acha que é um planeta ou só mesmo um manancial de recursos. A gente chama rio de recurso, chama floresta de recurso, chama montanha de recurso. É insano. Então uma hora o planeta, que é um ser vivo e que também tenta sobreviver, grita de volta. Já tivemos outras pandemias? Sim, já. Mas essa é a primeira vez na história que a gente tem dinheiro e conhecimento para fazer com que a pandemia seja sim apenas uma gripezinha. A gente tem conhecimento e dinheiro suficientes pra evitar que pessoas morram. Como? Era só pegarem esse conhecimento científico enorme e esse acúmulo histórico de riqueza e investir em sistemas de saúde amplos e gratuitos antes da porra da pandemia acontecer. Era só pegar esse sistema financeiro, que faz dinheiro com dinheiro e gera Himalaias de capital para que meia dúzia de homens sentem em cima, e criar um fundo comunitário de ajuda ao trabalhador durante essa fase. Era só gastar em ciência e saúde pública, por exemplo, os bilhões e bilhões que estão sendo gastos para arrumar um jeito de construir uma colônia em Marte para meia dúzia de bilionários excêntricos que já entenderam que se a gente continuar a furar o solo e destruir florestas não haverá mais possibilidade de vida humana nesse planeta e agora querem uma rota de fuga. Isso tá acontecendo, Marina. Tá acontecendo agora

– Tudo bem, Otávio. Tô com você até aí. Mas nada disso foi feito e agora estamos assistindo pela TV a morte de milhares que não precisariam morrer

– Mais vinho?

– Sim

– Mais peixe?

– Ainda não

– Então, Marina. São duas coisas. A primeira coisa é assim: todo mundo precisa morrer. Se a gente não morre, a vida não segue existindo. Essa jornada aqui é de substituição, de passar o bastão, de nascer, viver, se fuder, partir. Morrer é parte desse jogo misterioso, e a gente lida muito mal com a morte. A lógica colonial não suporta a ideia da morte, ela quer a imortalidade. E se a morte for incrível? E se morrer for um grande barato? Uma libertação? Como a gente sabe que morrer é pior do que viver? A gente vive como se nunca fosse morrer, a gente vive com medo, paralisado, apavorado com tudo. Isso é viver? O que deveria chocar não é a morte, mas a injustiça. A morte injusta. A morte que era evitável. A morte precoce. A morte de um filho que precisa ser enterrado pela mãe. Isso sim tem que causar revolta

– Quem invadiu o corpo do meu ex? Um monge? Porque meu ex era panicado com doença e com morte

– Ex… Tá, tá bom, Marina

– Ué. Vamos lidar com a realidade?

– Tá. Não quero falar disso agora. Voltando… Eu ainda sou panicado, Marina. Pra mim, a única alternativa pior do que um fim do mundo com uma pandemia seria um fim do mundo com uma invasão de baratas gigantes. Mas agora a gente tá no meio do caos e eu tô tentando buscar em mim algum recurso que me faça atravessar ele. É sempre pior antecipar o vendaval do que se ver no meio do vendaval, eu acho. Quando você tá no meio do vendaval você reage de alguma forma. Quando você tá só antecipando o vendaval você paralisa. E vamos combinar que esse vírus tá fazendo com o mundo o que nenhum movimento ativista jamais conseguiu fazer: parar tudo. Tem muito simbolismo nisso, vai. Caralho! Tudo parado, as pessoas recolhidas, os aviões pousados, os navios atracados. Não diziam que era impossível parar a tal da máquina globalizada? Pois um organismo menor do que as menores coisas que a gente consegue imaginar fez isso

– Você certamente tá desinformado porque tem gente por aí que decretou que não precisa parar porra nenhuma e tá em campanha para que todos saiam de suas casas e voltem a viver normalmente

– Claro que tem. Aposto que são os mesmos que acham que com uma arma na mão são mais machos. Mas isso não importa muito porque o mundo parou, esse é o grande barato. Eles podem sair com seus carros enormes pelas ruas buzinando quanto quiserem, mas o fato é que o mundo parou. Pra gente entender isso precisa de um certo distanciamento do dia a dia da crise. Não ver o noticiário me libertou, sabia? Isso que você falou de “estamos assistindo milhares de mortes” é outro ponto sensível nessa história. Você tá assistindo aquilo que as grandes corporações que distribuem notícias querem que você assista. Tua opinião está sendo constantemente mediada por essas corporações. E se essas emissoras de notícias decidissem dedicar o mesmo tempo ao renascimento do planeta que estão dedicando a morte de pessoas? Para cada notícia de morte uma notícia de rio que renasce, para cada hospital lotado uma notícia de ecossistema que se recupera, para cada dado sobre aumento do número de infectados uma imagem de céu despoluído, de tartarugas nadando na Baía de Guanabara ou de cidades ocupadas por patos selvagens. Já pensou como a gente seria impactado? Como a gente reagiria a essa pandemia se o noticiário fizesse isso? Com tanto pânico, será? Pânico contagia mais do que o vírus, Marina. Como disse o maravilhoso Krenak, a gente é pior do que o vírus

– Ah, nem tão alienado assim você está. Tá sabendo de umas coisas aí, né?

– Uma coisa é não ver o minuto a minuto da crise, outra é pegar ajuda com as principais vozes atuais para entender o que estamos vivendo. O noticiário deixa a gente infectado, Marina. E mais: induz um certo estado de espírito na gente. As mesmas corporações que decidiram que não era importante que a gente visse as chacinas de jovens negros nas favelas e nas periferias que aconteciam, e acontecem, a cada instante de nossas confortáveis vidas estão agora decidindo que essa pandemia precisa ser atualizada com um minuto a minuto das mortes. Se tivessem tido esse mesmo interesse pelas periferias do Brasil, a gente estaria vendo essas cenas de morte e de covas e de caixões e de mães chorando há décadas. E quem sabe teríamos resolvido a questão com o apoio da opinião pública, né? Era só focar nas favelas e nas periferias. Era só jogar a lente ali. Essas são as mesmas corporações que decidem que não é importante falar sobre o fato de haver hoje no mundo 20 homens com a mesma riqueza de quase quatro bilhões de pessoas, ou que decidem que não é importante falar dos grandes empresários que ainda fazem uso de trabalho escravo no Brasil, ou que escolhem noticiar o lucro dos bancos privados no Brasil como uma coisa maravilhosa, um exemplo das conquistas do capitalismo: basta querer e se esforçar e você chega lá. Chega lá aonde? Alcança o sagrado direito concedido pelo capital para explorar outros seres e acumular riqueza? Pra quê? Em nome do quê? As mesmas corporações que decidiram que era, afinal, uma escolha muito difícil. As mesmas que devem estar metendo na entrelinha o discurso do “aconteça o que acontecer, é preciso salvar a economia”. Salvar o que já estava morto antes disso tudo começar? Eles falam da economia como se ela fosse uma lei matemática universal e fixa e não uma teoria de argumentos criada do zero por todos nós. Falam como se fosse a coisa mais difícil do mundo da gente entender, dizem que é sobre superávits, sobre balança comercial, sobre derivativos, contratos futuros, taxas de câmbio, complicam tudo para que a gente se sinta um peixe fora d’água e eles possam fazer o que bem entenderem. Eles, aliás, são homens sempre muito brancos, de terno e gravata, que falam bonito. Gente escrota e arrogante. E que puta ficção do caralho eles criaram para acorrentar todos nós. Economia é sobre você e eu, sobre como a gente se relaciona e produz, sobre como a gente deseja viver, sobre atender as necessidades básicas do ser humano. Esses caras bacanudos falam como se antes do vírus estivesse tudo funcionando às mil maravilhas. Como se não tivesse gente passando fome, não tivesse uma concentração de renda indecente, gente tendo que trabalhar 15 horas por dia sete dias por semana para mal e mal pagar as contas básicas. Não tinha gente morrendo na porta de hospital por falta de médico não, né? Pois é. Economia é uma ficção, Marina. É o que a gente quiser que ela seja. Podemos imprimir tanto dinheiro quanto for necessário para construir clínicas e formar médicos. Podemos criar leis que incentivem bancos privados a emprestar dinheiro para quem vai executar trabalhos sociais e proibir que eles financiem especulação imobiliária, por exemplo. Podemos taxar bilionários em 90%. Podemos acabar com a herança. A partir de hoje não existe mais herança. Já pensou? Aí sim a gente podia começar a pensar em falar em meritocracia, né? Podíamos obrigar esse sistema financeiro que lucra obscenamente há décadas a criar um fundo que fosse capaz de sustentar por três meses o trabalhador em suas casas até essa pandemia diminuir. Então, diante desse sistema que a gente criou do zero, que explora o planeta e acaba com rios, florestas, ecossistemas inteiros, que enriquece meia dúzia à custa da miséria de bilhões e que a gente chama de economia, eu pergunto: por que não ver o mundo pela perspectiva da maritaca em vez de se deixar guiar pela lente dos bilionários?

– Oi?

– Ver o que está acontecendo pelo ponto de vista da maritaca

– Que maritaca, Otávio? Pelamor!

– As maritacas que se multiplicam na minha janela todas as manhãs, que cantam como nunca cantaram antes, que parecem mais felizes e cantarolantes do que antes

– O que elas dizem, meu querido?

– Elas dizem que os dias estão lindos. Que têm conversado com os rios e eles estão mais felizes. Que o ar está mais puro. Que as árvores estão mais verdes. Que o planeta tá voltando a respirar, que o sistema Terra está sendo religado. Vamos combinar que, do ponto de vista da maritaca ou de qualquer outro ser vivo, o melhor é que a gente desapareça da face da Terra, né?

– A questão é que eu não sei se você notou, mas nem você nem eu somos maritacas

– E isso é que é importante: agora é a hora da gente parar de falar em empatia e começar a praticar empatia. Mas não só com a gente, empatia pra cima de tudo o que é vivo. E a Terra é um organismo vivo, é um sistema, e não é só nossa casa ou a fonte de recursos que a gente se acha no direito de seguir explorando mesmo sabendo que isso que a gente chama de recurso, e que o planeta chama de uma parte de mim, são finitos

– Vou parar de debochar porque tô vendo que você tá falando bem sério. Tá bom, Otávio. Eu entendo o que você diz. Mas as pessoas aí fora estão com medo. Nem todo mundo tem uma casa como você, ou um quarto e passatempos que te ocupam e te protegem do colapso. Pra muita gente o mantra do “fique em casa” é uma ofensa porque não tem como alguns de nós ficarem em casa, sem contar que muitos nem casa tem. Ficar em que casa?

– Eu sei. O medo tá cercando a gente. Os medos, né? Medo da morte, medo de ficar sem grana, medo de perder quem se ama. Esse vírus tá disseminando uma série de medos. O medo de perder é um medo da porra, ainda mais nessa cultura do acúmulo e da propriedade. Perder é o que paralisa. Mas a gente vai morrer. E se não for com esse vírus vai ser num acidente ou de outra doença ou de velhice. A gente vai morrer e a gente deveria viver todos os dias sabendo disso. Não pra gente enlouquecer ou ficar melancólico, mas para entender que as coisas são preciosas justamente porque estão acabando. Tudo está dando passos para um final que a gente não sabe quando é: você, eu, seus pais, a maritaca, as pedras e até o Sol. Não tem nada de novo nisso. Nem é novo que o noticiário venda medo e imagens sensacionalistas. O medo é o afeto político mais central que existe, a melhor forma de deixar a gente bem obediente. O que é novo nisso tudo é que tem aí um vírus de letalidade baixa, mas altamente contagioso, que convida a gente a parar. A entrar. A se recolher. O vírus pede coisas que são opostas ao “acelera, Brasil. Acelera, mundo. Fura mais rápido. Queima mais rápido. Lucra mais rápido”. E o vírus teve a sabedoria de conseguir expor, finalmente, as mazelas das privatizações e do encolhimento de todas as coisas públicas em nome de todas as coisas privadas. Nunca antes o neoliberalismo foi tão exposto. Você não acha curioso que as pessoas consigam imaginar o fim do mundo, mas não o fim do capitalismo? Olha como esse sistema perverso tá internalizado na gente. Eu acho fascinante. Ah, ontem eu fiquei lendo aquele poema maravilhoso da Bishop, sabe qual? Que fala de perder?

– Acho que sei. Bishop não anda muito em alta, né?

– Ela talvez não. Mas acho algumas das coisas que ela escreveu não podem ser infectadas por escolhas pessoais equivocadas. Olha que coisa linda isso que ela escreveu, vou ver se consigo falar de cor:

“A arte de perder não é nenhum mistério;

Tantas coisas contêm em si o acidente.

De perdê-las, que perder não é nada sério.

Perca um pouquinho a cada dia.

Aceite, austero, a chave Perdida, a hora gasta bestamente.

A arte de perder não é nenhum mistério.

Depois perca mais rápido, com mais critério.

Lugares, nomes, a escala subsequente da viagem não feita.

Nada disso é sério.

Perdi o relógio de mamãe.

E nem quero lembrar a perda de três casas excelentes.

A arte de perder não é nenhum mistério.

Perdi duas cidades lindas.

E um império que era meu; dois rios, e mais um continente.

Tenho saudade deles.

Mas não é nada sério.

Mesmo perder você (a voz, o riso etéreo que eu amo) não muda nada.

Pois é evidente que a arte de perder não chega a ser mistério por muito que pareça (escreve!) muito sério.”

– Muito bonito

Tá tudo bem, Marina?

– Não, Otávio. Não tá. Eu tô triste. Tô acabada. Quer a verdade? Eu tô devastada. Toma! Essa é a verdade. Como a gente foi deixar isso acontecer com a gente? Como a gente matou essa história? Como você fez isso com a gente? Nem minha integridade narcísica tenho mais, tô aqui chorando feito uma cretina por alguém que foi um babaca como qualquer outro

– Não tem problema chorar, caralho. Qual o problema de falar que tá triste? Você se agarra nessa tal integridade narcísica com uma força que eu não entendo. Solta, Marina. É a gente. É a nossa história. Sou eu aqui. Olha pra mim. Sou eu

– Não é mais você. Ou é um você que eu não sei mais quem é. Eu tô sem chão. Você não era esse cara. Ou será que eu errei e você sempre foi esse cara que é apenas mais um cara igual a tantos caras?

– Eu não sei, Marina. Eu não sei. Eu não quero ser esse cara. Quero ser aquele outro cara. E eu também tô muito triste e me dilacera te ver desabar

– Que situação de merda, Otávio. Que bosta. Agora a gente tá diante de um deserto e, como bem disse o Krenak que você tanto ama, quando você estiver diante de um deserto só tem uma coisa a fazer: atravessar ele. Então é o que a gente vai fazer. Eu não aguento mais falar, elaborar, imaginar. Eu tô exausta. Exausta. Tô quase querendo ir pra rua e frequentar um lugar bem cheio de gente, sabe? Tipo foda-se esse vírus, foda-se essa preocupação, foda-se tanto cuidado, foda-se a humanidade. Mas não vou ter coragem, então preciso começar a atravessar esse deserto logo de uma vez

– É. É o que vamos fazer, Marina

– Tá. Não precisa chorar você também. Vamos mudar esse clima. Vou tirar a mesa, lavar essa louça e você coloca alguma coisa na TV pra gente ver, pode ser? Uma coisa leve e nada romântica, pelo amor de Deus. Quero que o romance e os românticos se lasquem

– Pode ser, sim

Marina levou a louça para a cozinha e não escutou quando Otávio disse baixinho:

– Eu te amo, Marina

Esta história continua. Acompanhe os próximos capítulos na Tpm.

Créditos

Imagem principal: Manhã Ortiz

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