Capítulo 22: O problema não é morrer, o problema é não viver

por Milly Lacombe

Não adianta esperar a morte chegar, mas talvez seja a oportunidade de pensar: como foi essa vida? Foi boa? Foi justa? Valeu? E o relacionamento? Milly Lacombe narra mais um dia de Otávio e Marina

Perdeu os primeiros capítulos desta história? Leia aqui.

Quarentena, dia 45

– Há quanto tempo a gente não passava tanto tempo juntos?

– Trancados em um ambiente de 100 metros quadrados por dias a fio, sem sair, a gente nunca ficou, né?

– Não estamos indo bem?

– Diante das circunstâncias, que envolvem pandemia, desamor, traições confessadas e machismo escancarado, e dado que seguimos vivos e respirando, sim, estamos indo bem

– Pois é. Parabéns pra nóis, Marina

– Se é pra parabenizar, tem mais coisa hoje

– Jura?

– Juro! Será que é indecente se sentir feliz na quarentena?

– Não acho que seja não, desde que você não seja irresponsável e saia dando festas por exemplo. E que bom que você tá feliz. Depois de um começo puxado, você parece que encontrou um jeito de existir dentro dessa situação estranha que vivemos. Mas hoje você tá feliz assim por quê?

– Porque a Joana decidiu transformar a agência numa cooperativa

– Legal

– Só isso? Legal? Que tipo de marxista é você?

– Segundo você, um marxista de merda

– Tá, Otávio. Sério. Por que o muxoxo com uma notícia dessas?

– Porque, Marina, agora que meio que tudo fudeu ela quer socializar o preju, né? Quando tudo ia bem era ela a chefe, mandava em tudo, ficava com o lucro e ponto final

– Que puta mau humor, Otávio! E você sabe qual o planejamento dela para a transição, por acaso?

– Não sei. Tem razão. Fui escroto. Me fala

– Ela vai pagar seis meses de salário integral e depois desses seis meses ela mantém 1/3 do salário por mais seis meses. Mas, já partir do mês que vem, todos os funcionários compartilham a sobra de dinheiro, decidem quanto vai ser reinvestido, onde vai ser investido, o que vai ser produzido e como vai ser distribuído. A Joana vai ser a diretora-geral até maio do ano que vem, quando teremos uma eleição para definir o novo diretor ou a nova diretora

– Todo mundo topou?

– Todo mundo menos duas pessoas que vão voltar para suas cidades

– Quantos sócios?

– Comigo e com a Joana, 18

– Muito bacana. Tem toda a razão de estar feliz. Me desculpa ter sido escroto

– Tudo bem, Otávio

– Tomara que muitas coisas mudem depois que isso passar

– Eu tô me convencendo que não vai passar, Otávio. Porque se a gente achar que vai passar, a gente meio que acha que vai voltar ao que era antes, e não vai. A gente não tá vivendo num parênteses, sabe? A vida é isso, sempre foi. Esse convite para cuidar da gente e das relações esteve sempre aí, né? Hoje é um vírus, amanhã é outra coisa que chama a gente a olhar os sonhos e os medos, as manias e os vícios. É uma fase ao mesmo tempo horrorosa e delirante, pavorosa e revigorante. Não é uma coisa que dá pra falar por aí porque tem gente que tá no perrengue e que tá morrendo. Mas esse vírus traz recados importantes e eu acho que uma hora a gente vai se dar conta do que aconteceu

– Que bom que você foi capaz de dar essa volta e sair daquele estado tão sombrio dos primeiros dias

– É, nem sei quando esse estado de espírito virou em mim, e acho que talvez eu volte a ter dias ruins, óbvio. Mas tô tentando naturalizar isso porque tá foda pra todo mundo

– Tá foda, sim. É uma fase em que o futuro foi suspenso

– O futuro não foi suspenso, né? Ele nunca existiu, Otávio. Olha a gente. Tantos planos e agora isso

– Isso o quê?

– A separação, Otávio. O fim. O encerramento de uma coisa que a gente julgou eterna

– Porra, Marina. Você fala assim e eu fico fudido

– Otávio do céu. Foi você que pegou suas coisas e saiu de casa

– Eu sei que fui eu. Mas as coisas mudaram desde aquele dia, né? Eu tive que voltar e aconteceu tudo o que aconteceu. Eu tô cheio de dúvidas e de medos

– Que medos?

– Medo de morrer. Medo de te perder. Medo de me perder. De ficar sozinho. De ficar doente. De não ter dinheiro pra minha velhice. Medo. Muito medo

– Mas você era o cara que estava bem até ontem, Otávio

– Mas acho que a ideia da gente não ser mais uma dupla tá batendo forte agora e me jogando nesse lugar de sombras

– Quer conversar um pouco? Me diz onde tá batendo

– Olha a merda que eu fiz: entrei no noticiário ontem. Puta cagada. Uma coisa leva à outra, né? Não consegui dormir. Só tragédia. O fim dos tempos. Morte, morte, morte pra todos os lados. Claro que eu sabia que estava assim, mas na hora que você chega perto e se rende a todo esse sensacionalismo medonho a coisa entra no sangue

– Eu te entendo. Mas essas coisas estão acontecendo de fato, Otávio. Não é sensacionalismo, sabe?

– Será? Tem outras também acontecendo e algumas delas são boas. Mas no noticiário não tem uma tentativa de equilíbrio, sabe? É só tragédia e tragédia e tragédia. Pior: a tragédia sem a causa da tragédia. Porque não é esse vírus que tá causando a tragédia, como não é a chuva que causa o alagamento. O que faz alagar é a gente sufocar córregos e rios, é jogar asfalto em cima de água corrente pra fazer avenida, é jogar lixo em bueiro, cortar árvore como quem corta unha. Chove desde o dia um que esse planeta foi feito. É igual com esse vírus. Vírus existem há bilhões de anos. São, na real, nossos ancestrais, estão em nosso DNA até hoje, tipo 5% do nosso DNA é feito de vírus. A gente nasceu deles. Mas na hora que a gente se acha uma coisa separada e diferente da natureza, na hora que a gente acha que a natureza tá aqui pra servir de recurso pros nossos luxos, a gente se coloca em oposições a forças que são muito maiores do que nossa coletividade humana. Nessa hora o renascimento do planeta significa nossa extinção no sentido em que, para que a Terra respire, a gente precise sumir da face dela. É uma maluquice o que a gente faz. Esse acúmulo sem fim. Esse acúmulo sem sentido. Progresso meu cu! Que progresso é esse que a gente busca? Mais aviões? Mais carros? Mais petróleo? Mais shoppings? Mais caça de baleia, mais matança de tubarão, mais lixo nos oceanos? É muita maluquice. Progresso é não acumular. É viver com pouco. É nutrir as relações. Então colocar a culpa no vírus, declarar guerra contra o vírus é tipo uma imbecilidade, uma estupidez, e uma manipulação tosca da opinião pública. Isso me deixa muito puto toda vez que caio na besteira de ler a porra do noticiário. Quer falar da tragédia fala, mas fala também do que nos trouxe a ela, que é essa puta falta de estrutura social, a nossa sem vergonhice em abusar do planeta e de todos os animais, etc. Ficam falando de morte o tempo todo quando o problema não é morrer, o problema é não viver. E tem bilhões de pessoas nesse mundo que não têm o direito de viver. É uma gente que apenas sobrevive, dia após dia. Não se trata de focar apenas na morte dessas pessoas, mas também no direito à vida que foi negado a elas desde sempre. Óbvio que a pandemia é uma tragédia para qualquer sociedade que se negou a se preparar para ela, para qualquer sociedade que ache razoável cobrar por saúde, que diga que uns têm mais direito à vida do que outros, que ache que individualidade é uma coisa real, como se fôssemos, como a palavra diz, indivisíveis. Somos o tempo todo divididos por medos e dúvidas e angústias. Quem é o indivíduo? Que individualidades estamos defendendo? Quanta bobagem essa história das liberdades individuais. Não existe liberdade individual. Liberdade ou alcança todo mundo ou não é liberdade. Então óbvio que é uma tragédia isso tudo! Mas por nossa causa, não por causa do vírus.

– Tá, Otávio. É isso tudo aí mesmo. Mas descansa um pouco o ativista e me diz o que de pior pode acontecer com a gente

– A gente morrer uma morte medonha, sufocante

– Não é. Isso não é o pior mesmo. O pior que pode acontecer é a gente voltar ao que era antes disso tudo começar, em todos os níveis e sentidos. Essa morte medonha e sufocante vai ser rápida. Voltar ao que era antes é perpetuar um erro

– Pelo menos era um erro familiar, confortável

– Você falando do quê? Do mundo ou da gente?

– Da gente. Do mundo. Sei lá. Não sei mais de nada

– Otávio, meu amor. Foi você que me ensinou que morrer era parte desse jogo, lembra? Você tinha toda a razão. Entender isso me libertou um pouco. De fato, a gente pode morrer. Eu fumei até meus 30 anos, meu pulmão é todo cagado. Você teve bronquite. A gente não só pode morrer como a gente vai morrer. Você que me disse isso

– Eu sei. Aquele era um outro Otávio, esquece ele. Agora tô fudido com tudo isso. E eu devia estar bêbado quando disse tudo aquilo. Eu não sou esse cara corajoso e pimpão que fala esse tipo de coisa. Eu devia estar querendo te reconquistar

– Você é, sim, esse cara. Quando te bate uma lucidez você fala essas coisas que fazem todo o sentido e normalmente me tiram do transe paranoico em que eu estava. Otávio, vem cá. A morte tá aí. É o que temos. Vem hoje por causa do vírus, vem amanhã porque o coração para no meio do dia, vem depois de amanhã num acidente… Quem sabe? Ela vem, com Covid ou sem Covid. Então a gente vai encarar ela de frente e fazer a única coisa possível, tá?

– Que é?

– Antes de mais nada, não passar o dia fritando e esperando ela chegar. E depois dizer assim: já que a morte tá aí, e pode sim me pegar agora ou já já, me diz como foi essa vida? Foi boa? Foi justa? Valeu? E a mesma coisa deveria valer para o fim de um relacionamento. Foi bom? Valeu a pena? Eu cresci com ele?

– Eu sei, Marina. Você tem toda a razão. Tem umas coisas bonitas acontecendo no meio de tanta podridão, só que tem dias que fica difícil se dar conta disso. Tem dias que parece mesmo que o céu tá desabando na nossa cabeça. Mas eu sei que é sempre bom quando gente vê nosso tamanho real. A gente é uma poeira cósmica. Um nada. E isso apavora, sempre apavora. Mas é o que a gente é e, de um jeito estranho, é libertador pensar assim. O que fica como clarão no meio de tanta escuridão é que a gente é um tipo de poeira muito esquisita porque a gente é uma poeira potente. Mas ainda assim é poeira, né? A gente tá no meio de uma peste inédita pra nossa geração. Caralho! O que tá acontecendo é muito foda. Se a gente não entender que tá todo mundo mais ligado do que a gente supõe então vai fuder mesmo. Se a porra do rico não entender que o bem-estar do pobre diz respeito ao bem-estar dele também, a gente vai se matar todo mundo. E tudo bem, sabia? Pensando bem, que se foda. O que é a minha existência nesse universo? Oitenta anos, se muito, numa historia de bilhões de anos, é isso? Que porra de poeirinha arrogante sou eu. Quem sou na fila da vastidão cósmica, né? Mas, de verdade, não é isso que tá pegando pra mim. O que me martela mesmo a cabeça, o que me consome e devora, é pensar o seguinte: quem sou eu sem você? E eu não sei, Marina. Eu juro que não sei.

Esta história continua. Acompanhe os próximos capítulos na Tpm.

Créditos

Imagem principal: Manhã Ortiz

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