Capítulo 23: Let’s Get It On

por Milly Lacombe

Uma dança marca um fim ou um começo? Acompanhe o penúltimo capítulo da história de desamor de Otávio e Marina, narrada por Milly Lacombe

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Quarentena, dia 55

– Marina, eu estava no banheiro e como não levei nada para ler tive que ficar pensando

– Tá, Otávio. Entra logo no assunto porque eu tô ocupada e não vou ter tempo para você elaborar a arte do seu cocô agora

– Não, não era sobre o cocô. Presta atenção, Marina. Eu fiquei pensando que as pessoas que são contra o aborto, que acham que o feto já é um ser humano, deveriam comemorar seus aniversários no dia em que foram fecundadas. O que você acha?

– Otávio, eu acho que um pouco de noticiário não te faria mal, sabia? Porque evitaria esse tipo de devaneio

– Ah, você quer me fuder, né? Tô há uns dez dias limpo de novo, tô voltando a me sentir bem, e você me manda ir chafurdar nas notícias? Aliás, outra coisa que fiquei pensando é assim: quem é você entre um pensamento e outro? Você já pensou nisso?

– Como assim, meu Deus?

– Tipo: a gente acha que a gente é essa voz na nossa cabeça, né? Mas e se a gente não for? E se esses pensamentos forem apenas vozes que passam e o que a gente é de verdade existir justamente quando os pensamentos param

– Otávio, os pensamentos não param

– Tá, não param. Mas existe uma fraçãozinha de segundo entre um e outro, uma microfissura, e é lá que eu acho que a gente existe de verdade

– Eu não sei o que te dizer

– Não diz nada porque eu quero falar mais. Eu nem acho que é nesse lugar aí que a gente existe. Eu acho que é nesse lugar aí que Deus existe

– Otávio, em nome de Jesus, do que você está falando? Que Deus? Você nunca acreditou nele

– Nela, né? Se existir tem que ser mulher, não acha?

– O que você bebeu?

– Tava indo até pegar um vinho. Topa?

– Já já. Tenho que acabar de ver uma planilha

– Mas então. Se existir um Deus tem que ser mulher, eu acho isso

– Otávio, se Deus existir esse ser já terá transcendido a divisão binária entre homem e mulher

– Ah, agora você tá me dando uma coisa sobre a qual pensar. Pode ser mesmo. Imagina se Deus pode ser um ou outro, né? Não teria mesmo nenhum cabimento

– Agora vou voltar aqui pro trabalho

– Pera, mais uma coisa

– Fala, Otávio. Meu Deus…

– Aquela história de eu chupar buceta muito mal era verdade?

– Não, não era

– Você tá dizendo isso pra me animar?

– Não, não tô. Naquele dia eu estava puta e disse isso

– Eu sou bom, então?

– Quer a verdade?

– Quero

– No começo você não era. Mas você melhorou muito com os anos e eu garanto que sua próxima namorada vai ficar satisfeita

– Eu não gosto quando você diz essas coisas

– Que coisas?

– Essas coisas que dão nossa história por encerrada

– Eu também não gostei quando você avisou que ia sair de casa, não gostei quando você me contou da traição. A gente supera essas coisas

– Você já ligou o foda-se, né?

– Não, Otávio. Eu não liguei o foda-se. Eu tô aqui ainda com as feridas abertas, mas eu precisei lidar com elas. Eu não queria que nada disso tivesse acontecido

– A partir de que ponto?

– A partir do dia que você disse que ia embora

– Então você tá me dizendo que antes estava bom, é isso?

– Não. O que eu tô dizendo é que a gente podia ter conversado e tentado se entender antes de você decretar que estava de saída

– Vai ver que relacionamentos são como guerras: a gente sabe quando começa, mas a gente não sabe quando termina

– Vai ver

– Do que você vai sentir falta no nosso relacionamento?

– Ah, Otávio

– Me diz

– Porra, Otávio…

– Fala

– Vou sentir falta de dançar com você na sala numa quarta-feira qualquer. Vou sentir falta do barulho do seu violão na sala no fim do dia. Vou sentir falta do seu sorriso depois que a gente faz amor. Da sua voz me perguntando se eu quero um vinho. Do jeito que você mexe no cabelo quando está lendo. Dos seus pelos caídos pelos azulejos do banheiro. Do barulhinho que você faz com a boca quando tá quase pegando no sono. Do seu pé mexendo no meu pé na cama nas primeiras horas da manhã. De escutar você ronronar quando coço suas costas. Do cheiro da sua pele na minha. Da gente andando de mãos dadas pela Lagoa num domingo nublado. De você rindo daquele filme ridículo que você ama com a Drew Barrymore e o Jimmy Fallon que você já viu 50 vezes, de você chorando toda vez que assiste a reprise da vitória de virada do Flamengo na Libertadores. Dos comentários bizarros sobre seu próprio cocô. Tá bom?

– E se a gente estiver cometendo um erro? E se o nosso relacionamento não tiver terminado?

– Eu não sei como faz para saber essas coisas. A única coisa que me passa pela cabeça é a gente se afastar e aí ver

– Então eu talvez estivesse certo quando saí de casa

– Não. Você não estava certo porque a gente tinha que ter conversado. Não é pegar as coisas e sair. Tinha que ter uma conversa antes. Ou mais de uma. E não teve. Mas do seu jeito destrambelhado você obrigou a gente a se olhar outra vez, e isso acabou sendo bom. De um jeito doído, mas bom

– Não teve conversa porque você estava sempre muito ocupada

– Ah, tá bom. Porque você ama uma DR, né? Você nem nunca tentou, Otávio. A gente cagou, vamos falar honestamente? A gente cagou! A gente esqueceu de olhar para o relacionamento, de prestar atenção nessa relação. Mais do que olhar um para o outro. Mais do que se dedicar ao outro. Eu acho que é fazer concessões e negociações em nome dessa terceira coisa que a gente criou, que é a nossa história, o nosso relacionamento. Dá um puta trabalho, ô se dá. Enche o saco às vezes ter que sentar e falar e falar e falar. Enche o saco fazer concessões. Mas eu acho que, se existir um segredo para que duas pessoas não se percam, o segredo tem que passar por aí, sabe? Fazer concessões não em nome do outro, mas em nome do relacionamento. Ser honesto e ser leal. Fugir não é uma opção

– Você tá certa. Eu fugi. Em vez de lutar eu tentei fugir. É que o mecanismo de fuga é uma estratégia de sobrevivência, tipo o antílope quando vê o leão

– Imagino que nesse caso eu seja o leão

– Não tô dizendo isso. Dei um exemplo bobo

– Tem uma terceira via, sabia? Não precisa necessariamente fugir ou lutar. Pode parar, olhar em volta, encontrar um lugar mais ou menos seguro e refazer as redes de afeto, tentar encontrar novas formas de estabelecer parcerias

– Mas você nunca estava presente, nunca disponível!

– Otávio, deixa eu te falar uma coisa: quanta energia a gente ainda vai gastar para tentar corrigir o passado? Não te parece inútil?

– E o que a gente faz?

– Eu não sei…

– Será que as pessoas se perdem pra sempre?

– Eu não sei, Otávio. Eu não sei. Para de me fazer tanta pergunta

– Posso te pedir uma coisa?

– Mais uma pergunta!

– Última

– Pode

– Dança comigo?

– Agora?

– Agora

– Por quê?

– Pra gente dançar. Só pra isso. A dança não tem um significado, necessariamente. É só uma dança. Você, eu, uma música e a nossa relação

– Uma música só?

– Uma música

– Qual?

– Let’s Get It On

– Ah, caralho

– Por favor

– Que sacanagem. É a música que a gente dançou na segunda noite

– É

– Aqui nessa sala

– Isso

– Assim você me fode, Otávio

– Vem, Marina. Uma dança. Uma dança de despedida, que seja. Sabe, os xamãs Yanomami pra virarem xamãs tomam o néctar de uma planta e sob o efeito dela esperam que os espíritos venham dançar pra eles. Fazer uma dança de apresentação, uma dança de reconhecimento, uma dança que serve pra marcar o começo de um relacionamento porque depois dessa hora eles podem ser xamãs. Eu quero dançar com você agora me permitindo não saber se essa dança é uma dança de despedida ou uma dança de apresentação. Se ela marca um fim ou um começo. Pode ser?

– Pode, Otávio. Pode ser sim

– Me dá sua mão, meu amor

Esta história continua. Acompanhe os próximos capítulos na Tpm.

Créditos

Imagem principal: Manhã Ortiz

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