Capítulo 13: Não quero debater pelo no suvaco

por Milly Lacombe

Nem todo homem acredita que ser mulher envolve sentar de perna fechada, ser doce, amável, não falar alto, palavrão nem demonstrar raiva? Acompanhe a história de Milly Lacombe na Tpm

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Quarentena, dia 21

– Seria bacana se alguma hora você parasse de rir

– Desculpa, Otávio. Mas tá muito estranho você sem sobrancelha

– Eu não tô sem sobrancelha. Eu tô sem a metade de uma sobrancelha

– Metade? Agora entendo por que você divide sobremesa sempre tão mal

– Podemos não falar em sobremesa?

– Otávio, meu amor, o que faz alguém colocar a cabeça praticamente dentro da frigideira na mesma hora em que tá adicionando álcool ao calor?

– Eu me inclinei levemente para cheirar. Quem poderia imaginar que o fogo ia subir tanto?

– Pois é: quem? Quem poderia? Fico me perguntando a mesma coisa

– Bom, já foi. Vai crescer de novo a sobrancelha

– …

– Não vai? Sobrancelha não cresce? É uma por vida?

– Eu não sei. Acho que cresce. E até a gente sair da quarentena já vai ter voltado ao volumaço de antes

– Será?

– Vamos confiar nisso

– Hoje vou fazer uma sopa

– Vai se aventurar outra vez na cozinha?

– Vou porque se não for logo eu posso pegar trauma

– Sopa do quê?

– De cenoura com gengibre. Dessa vez peguei uma receita

– Acabou a cozinha intuitiva do Tavo?

– Estamos trabalhando apenas com o tempo presente aqui

– Que horas vai rolar esse jantar?

– Oito?

– Vou encerrar por hoje e tomar um banho de banheira. Como já passou das seis, posso abrir o bar?

– Ô se podemos. Tinto ou branco?

– Vamos de branco?

– Como mudamos rápido de habito, né? Morreu o uísque em nossas vidas, será?

– Acho que muitas coisas vão morrer e dar lugar a outras novas

– Pera que te sirvo e você leva o vinho para a banheira

– Tá. Já volto. Boa sorte na sopa

– Pra gente

Otávio coloca a mesa e serve a sopa enquanto Marina senta.

– Tá bom pra mim, obrigada

– Acho que ficou boa. Prova

– Boa mesmo. Talvez falte sal pra mim, mas tá ótima

– Alguma novidade no trabalho? Vi você falando animada com a Joana e foi a primeira vez nessa quarentena

– Foi mesmo. A gente talvez tenha tido uma ideia para o Ananda que envolve também a Carbono

– O que é a Carbono mesmo?

– A confecção

– Ah é. Pode contar a ideia?

– A gente ainda precisa da devolutiva, mas o projeto já tá com eles

– Que é…

– Que é a gente abrir o Ananda para alimentar a população de rua, deixar a casa ao lado, que é a cozinha de delivery, como uma espécie de clínica, e usar a Carbono para fazer máscaras e aventais

– Nossa, que revolução

– A gente tá falando com a ONG do padre Julio, que trabalha com moradores de rua lá na Lapa, bem perto do Ananda. A ONG organizaria as refeições. E um grupo de trabalho dos Médicos Sem Fronteiras cuidaria da clínica improvisada na casa ao lado

– Quem paga por isso?

– Nas duas primeiras semanas seria o caixa do Ananda e da Carbono. E a gente usaria esses 15 dias para estabelecer parcerias com outras marcas que queiram se associar ao projeto e bancar também

– Você tá parecendo empolgada e eu tô achando lindo, mas o que o cliente ganha lá na frente?

– Ué. Não estávamos trabalhando apenas com o tempo presente?

– Boa, Marina. Agora me diz, vai

– Mas é mais ou menos isso, Otávio. Que lá na frente? Onde tá o lá na frente? Os sócios estavam considerando simplesmente fechar e pronto. Por que não causar um impacto social? Por que não sair em grande estilo? Por que não?

– Bom te ver apaixonada assim

– É. Tô muito. É uma energia diferente a que você usar para criar e a que você usa para simplesmente evitar morrer

– Evitar o inevitável é exaustivo

– Mas vamos ver como os clientes respondem ao projeto

– De quem foi a ideia?

– Joana e eu pensamos juntas ontem à noite

– Nossa, a que horas você dormiu?

– Depois do incêndio na sua sobrancelha eu perdi o sono e quando vi que ela estava online eu liguei

– Ela e a Cris estão bem?

– Aquela relação ali parece sempre tão indestrutível…

– O que a quarentena não destrói jamais será destruído

– Eis aí uma verdade. E eu acho que te devo aqui um agradecimento

– Pelo quê?

– Porque essas ideias só vieram depois do nosso papo de ontem e daquela conversa sobre imaginação bloqueada

– Eu gosto da gente quando a gente tá sendo gentil um com o outro

– Gentileza nunca foi nosso forte, né?

– Permissão para ser sincero?

– Mais vinho antes, então

– Vamos abrir um tinto agora?

– Vamos

– Me dá sua taça que vou passar uma água

– Obrigada, Otávio

– De nada, Marina. Você acha estranho que a gente não tenha se apelidado de nomes fofos?

– Não escutei

– Pera, tô voltando com o vinho

– Fala

– Você acha estranho que a gente não tenha se apelidado?

– Com apelidos fofinhos?

– Isso

– A gente nunca foi um casal fofinho. Era sobre isso exatamente que falávamos

– Então

– Ai, lá vem. Manda. Mais vinho primeiro

– Saúde!

– Saúde

– Então, Marina. Você nunca foi fofinha, né? E eu entrei nessa vibração

– Você se acha fofinho?

– Um dia eu fui

– E eu matei isso em você

– De certa forma

– O que é ser fofinho?

– Ser gentil, não gritar, ser doce, não agredir…

– Uma mulher que não é essas coisas é uma mulher bruta?

– Uma pessoa bruta

– Você acha realmente que homens e mulheres são igualmente julgados por essas características? Um homem que grita é avaliado do mesmo jeito que uma mulher que grita?

– E não é?

– Não, Otávio. Não é. Meu Deus! Quantas vezes você escutou alguém dizer que um homem era difícil? Que um homem era complexo? E uma mulher? Ser uma mulher difícil, o que é isso? Ser rude? Complicada? Mulheres não podem ser nada disso? O que a gente pode ser? Doce? Gentil? Meiga?

– Lá vamos nós

– Onde a gente vai?

– Para esse lugar do “vocês homens são todos iguais”

– Otávio, eu realmente não tô com força para um debate hoje. Mas eu vou precisar te dizer pela centésima vez algumas coisas. Não são os homens que são todos iguais. A gente tá falando de uma estrutura de poder que se chama machismo e que tá dentro de homens e de mulheres porque a gente cresce tomando esse troço na mamadeira, vocês e a gente. Então não é igualar homens, mas reconhecer a força dessa estrutura que constitui e formata todas as relações. Isso é uma coisa. A outra é esse papo do “nem todo homem” que, pelo bem da sua desconstrução, você precisa entender de uma vez por todas. Quando vocês dizem coisas tipo “nem todo o homem” ou “você tá dizendo que todo homem é igual” o que vocês realmente querem comunicar é “eu não sou assim”. E nada poderia ser mais apequenado do que esse pranto por atenção. Essa história não é sobre vocês. Não é sobre uns serem e outros não serem assim. É sobre uma porra de uma estrutura de poder que nos mobiliza a todos. Mas quando você vem com o “nem todo homem” você quer, outra vez, falar de você, de como você não é assim, de como você é fofo e desconstruído e não participa dessa estrutura. Pois eu digo: você participa sim. Sabe como? Se beneficiando de uma sociedade estruturada para fazer de você o "gênero certo" e de mim o "gênero errado". Nem todo homem é machista? Ok, podemos debater. Mas todos, todos, todos, os cis e os trans, tiram proveito dessa estrutura machista. E nem toda a mulher é feminista, eu sei. Mas todas, todas, todas, as cis e as trans, são vítimas dessa mesma estrutura. Então esse papo de “eu sou fofo” não cola. Eu realmente não sou fofa. E não preciso ser. Não posso ser. Ou se eu fosse fofa teria o cargo que tenho? Fofura não faz mulher nenhuma ir longe nesse mundo masculinizado. Sabe o que a sociedade oferece a uma mulher fofa? Abusos. Violências. Silenciamento. Se eu quero ser assim desse jeito que o mundo chama de difícil? Talvez não, talvez não me faça bem também, mas se a escolha é ser assim ou me deixar abusar eu não tenho muito uma escolha, tenho?

– Marina, eu te entendo, juro. Tudo isso faz sentido. Mas esse debate ficou muito chato e nós, os aliados, estamos apanhando. Como vocês vão conquistar a gente?

– A gente não precisa conquistar ninguém. A gente precisa que vocês percebam essa estrutura e façam o que puderem para destruir ela em nome de uma liberdade que também vai ser de vocês

– Como faz isso, Marina. Ideias?

– Quer saber? Vou te dar um pequeno exemplo: não colocando casos fronteiriços no centro do debate

– Não entendi

– Não quero discutir se uma cantada no bar é machismo ou não, e é esse o debate que tá sendo proposto. Esses debates diminuem a luta. Não quero debater pelo no suvaco. Feminismo não é um referendo sobre esse tipo de coisa, um manual sobre escolhas pessoais, sobre ter uma buceta cabeludaça, lisinha, com bigodinho... Cada uma com a buceta que bem entender. Feminismo não é sobre isso, nunca foi. Feminismo é uma grande desconstrução, um completo colapso de tudo o que conhecemos como verdade, é a libertação de todo mundo de um mundo machista, racista, LGBTfóbico e cheio de dualidades. É sobre tons, sobre camadas, sobre todas as tonalidades que existem entre ser homem e ser mulher, ser preto e ser branco, ser gay e ser hétero. É sobre desaprender. Esse específico feminino de que tanto falam por aí não envolve ser doce, sentar de perna fechada, ser amável, não falar alto, não falar palavrão, não demonstrar raiva. Essas coisas não nasceram com a gente. Elas foram impostas desde o berço e qualquer uma que escape disso vira bruta, difícil, agressiva, complicada. Feminismo é também lutar contra essa tirania da doçura, da amabilidade, da gentileza. E ser um cara que apoia o feminismo envolve lutar essa luta aí. Vai encarar? Ou vai seguir com o seu pranto de bebê chorão do “nem todo homem”? Não faz essa cara de assustado e não precisa dizer nada. Pensa a respeito que eu vou lavar essa louça porque, numa divisão igualitária de tarefas, nada mais justo que eu lave já que você cozinhou.

Esta história continua. Acompanhe os próximos capítulos na Tpm.

Créditos

Imagem principal: Manhã Ortiz

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