Pelo direito de ser criança

por Carolina Delboni

Brasil apresenta índices alarmantes de abuso e exploração infantil e enfrenta realidade dura: 70% daqueles que presenciaram algo do tipo se calaram

O abuso e a exploração sexual infantil acontecem às escondidas. É difícil acreditar em uma realidade que, de acordo com um estudo da Unicef, coloca o Brasil como quarto país do mundo onde mais acontecem casamentos com menores de idade. E o primeiro no ranking latino-americano de violência contra a criança (o que também inclui abuso sexual), segundo pesquisa recente realizada pela organização social Visão Mundial. Dados assim expõe a urgência do assunto.

Em escolas públicas, os corpos de meninas tornam-se moeda de troca por amenidades, roupas e até um batom. No Terminal de Cargas Fernão Dias, um dos pontos mais problemáticos de São Paulo, menores de idade se prostituem para comprar comida. A menos de 100 metros dali há uma base da Polícia Militar. E ninguém faz nada.

O primeiro passo para o Brasil começar a reverter esse quadro seria, consensualmente, deixar de ver a exploração sexual de crianças e adolescentes como algo normal. “A luta para desnaturalizar esta prática ainda está começando. Não se fala desse assunto no Brasil. O primeiro passo nesse processo é gerar um movimento de indignação, fazer com que as pessoas denunciem”, diz Luciana Temer, presidente do Instituto Liberta, que já foi secretária de assistência e desenvolvimento social do município de São Paulo e secretária da juventude, esporte e lazer do Estado. A organização visa conscientizar e mobilizar a população. “Porque só quando a exploração sexual infantil for reconhecida como um problema social é que conseguiremos avançar nas soluções.”

Em pesquisa do Datafolha encomendada este ano pelo Instituto Liberta, 100% dos 2097 entrevistados sabem que é crime pagar por sexo com crianças e adolescentes, mas 70% daqueles que presenciaram algo do tipo se calaram e 30% diz não saber como efetuar uma denúncia. O que confirma a falta de preocupação de grande parte da população.

É necessário denunciar. E para isso é preciso conscientização. Daí a importância de um das ações do Instituto Liberta, as Rodas de Conversa, que acontecem com educadores e mediadores de escolas públicas do Estado de São Paulo. “Depois da casa, a escola é o lugar em que a criança mais confia e estabelece relação”, conta Cristina Cordeiro, responsável pela condução dos encontros. É ali que ela vai ter liberdade e segurança para dizer o que está acontecendo.

Por meio das rodas chegam relatos de abuso sexual. Em um dos casos, a mãe filmava as relações sexuais que mantinha com o filho e enviava os vídeos para seu marido, que os usava em troca de favores no presídio. Ou o relato de alunas que frequentam uma escola pública ao lado do Terminal de Cargas Fernão Dias e são retiradas da sala de aula para atender a clientes. Segundo a professora, os clientes chegam, buzinam e as mães buscam as meninas na escola.

A reportagem da Tpm esteve presente como ouvinte em uma roda com 40 educadores. Dos que ali estavam, todos, sem exceção, tinham pelo menos uma história para contar. Alguns descreveram dois, três casos. Uma professora relatou que, a partir de um trabalho de ciências sociais, meninas escreveram sobre os abusos que sofriam. O que poderia ser apenas uma tarefa escolar deu vazão a algo que as sufocava. O desabafo pode vir em um texto, um trabalho de classe ou um relato. Daí a importância de se conscientizar e saber escutar. 

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A diferença entre abuso e exploração sexual

Ambas são manifestações de um conceito mais amplo que é a violência sexual, que acontece quando crianças e adolescentes são usados para gratificação sexual de adultos, sendo induzidos ou forçados a práticas sexuais. Trata-se de uma violação dos direitos humanos universais e dos direitos peculiares à pessoa em desenvolvimento, negando a ela o direito ao desenvolvimento sadio de sua sexualidade. Esses direitos são estabelecidos pela Constituição e pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).

O abuso sexual pode acontecer dentro e fora do núcleo familiar e de diversas formas. Não é apenas através do contato físico e pela penetração. Assédio verbal, pornografia, exibicionismo e voyeurismo, por exemplo, também são práticas molestativas. O abuso com contato físico acontece quando há carícias nos órgãos genitais, tentativas de relações sexuais, masturbação, sexo oral, penetração vaginal, anal etc. Existe, contudo, uma compreensão mais ampla de abuso sexual com contato físico que inclui beijos e carícias forçados em qualquer região do corpo.

A exploração sexual é caracterizada pela relação de uma criança ou adolescente com adultos, mediada pelo pagamento. O que consiste em qualquer situação na qual o sexo é usado como moeda, como pornografia, tráfico para fins sexuais como ocorre, muitas vezes, disfarçadamente em agências de modelos e de trabalho internacional; a exploração sexual agenciada, como ocorre em clubes noturnos e serviços de acompanhantes; e a exploração sexual não-agenciada que é a prática de atos sexuais realizada por crianças e adolescentes mediante pagamento ou troca de um bem, droga ou serviço.

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