Tpm destrincha o abuso sexual, um tabu que causa não só traumas, mas também culpa
Se você já sofreu abuso sexual, não é exceção. Ninguém fala, mas acontece nas melhores famílias – e por que não na sua? Tpm ouve histórias e destrincha o tabu que causa não só traumas mas também culpa
Sofia* tinha 6 anos quando descobriu a sexualidade – pelo menos, na prática. Estava com o primo de 17, na casa da avó, quando ele começou a tocar regiões do seu corpo em que só sua mãe encostava, durante o banho. A menina não sabia que aquele tipo de carinho, nessas circunstâncias, não era natural entre adultos e crianças, embora aconteça em muitas outras famílias. E, nas primeiras vezes que Marcos* se esfregou nas coxas dela até ejacular, tocou seu clitóris ou mandou que ela fizesse sexo oral nele, Sofia ficava paralisada pelo medo da situação desconhecida. A confusão aumentou quando sentiu que os estímulos geravam uma sensação prazerosa – porém involuntária –, causada pelas terminações nervosas que se concentram nas zonas erógenas do corpo. Como qualquer criança, ela descobriria isso interagindo com amiguinhos da mesma idade e tocando o próprio corpo. Mas não deu tempo.
A menina passou oito anos se submetendo aos desejos eróticos do rapaz. Ele, então, pedia a ela que não contasse a ninguém o que faziam, senão os pais dela sentiriam vergonha. De fato, nenhum familiar, mesmo morando todos no mesmo sítio, parecia desconfiar. Nem quando ela completou 14 anos e Marcos a iniciou no sexo com penetração.
Mas por que, afinal, uma menina não diz “não” ao passar por isso? “É difícil dizer ‘chega’, pois a nossa sociedade é caracterizada pela submissão da criança ao adulto”, explica a psicóloga Karen Michel Esber, que escreveu o livro Autores de Violência Sexual contra Crianças e Adolescentes. Sofia, hoje com 33 anos, confirma o que diz a especialista. “Ele se fazia de ‘o primo mais legal’ e criei certa dependência da relação.
Por isso, me sentia culpada. Como podia gostar do cara que fazia aquilo comigo?”, questionava ela. Embora nunca tenha sido pega à força, Sofia arriscava dizer “não quero”. Mas o garoto respondia que ia ser rápido e partia pra cima. “A mulher tem tendência a resistir, resistir até que cede. Quando a relação é saudável, o homem a corteja até ela se entregar por amor. No caso de abuso, ela entrega os pontos”, resume o psicanalista Oscar Cesarotto, da PUC-SP. Ele conta que suas pacientes que sofreram abuso sexual** só depois foram descobrir que as questões que as levaram a procurar seu consultório – dificuldade de se relacionar com filhos ou marido, ou travas sexuais – estavam associadas aos traumas da infância.
A constatação acima é comum a todos os médicos e psicólogos ouvidos pela Tpm. Os especialistas também concordam que casos de abuso acontecem com igual frequência em todas as classes sociais, embora percebam que nas mais altas o comum é abafá-los. Porém, quando o silêncio é rompido, elas costumam lidar melhor com a questão. “As mais pobres têm preocupações básicas de sobrevivência”, observa o psicólogo Julio Peres, autor de Trauma e Superação – O Que a Psicologia, a Neurociência e a Espiritualidade Ensinam. Por exemplo, se o salário vai dar para pagar as contas. “Já as que têm estudo, condições financeiras, enfim, mais possibilidade de refletir sobre si mesmas, assimilam melhor a experiência”, conclui.
Apesar das variáveis, ninguém que passe por isso está privado de conhecer, precocemente e de uma só vez, sensações tão paradoxais quanto prazer, culpa e solidão. “A criança sente dificuldade em saber que aquilo é errado. Geralmente, o abusador é alguém em quem confia, que muitas vezes dá doces ou um dinheirinho para conquistar o silêncio”, esclarece Daniela Pedroso, psicóloga e mestre em saúde materno-infantil. Ela trabalha há 12 anos no Núcleo de Atenção Integral a Mulheres em Situação de Violência Sexual do hospital paulistano Pérola Byington. Lá, todos os dias são atendidos entre 15 e 18 casos de violência sexual, sendo a metade deles com crianças. Mas estima-se que as 21 mil denúncias que o hospital recebeu em 16 anos representem apenas 10% do que acontece na realidade.
“Ele se fazia de ‘o primo mais legal’ e criei certa dependência da relação. Por isso, me sentia culpada. Como podia gostar do cara que fazia aquilo comigo?” Sofia, 33 anos
Nas melhores famílias
Logo, o que aconteceu com Sofia é mais comum do que se imagina, inclusive a parte do primo e a da culpa. Segundo o Ministério da Saúde, 86% dos abusadores conhecidos são da família ou muito próximos. Já as vítimas, 78% das vezes são mulheres, segundo o Disque Denúncia Nacional de Abuso e Exploração Sexual contra Crianças e Adolescentes. “Tem a fase do conflito, quando a criança já entende que aquilo não é certo, mas ainda não está madura para dizer que não quer”, reflete o obstetra Osmar Colás, coordenador do Programa de Atendimento à Violência Sexual da Unifesp.
Foi o que viveu Bianca*, hoje com 35 anos, que teve a primeira experiência sexual com um primo dez anos mais velho. Ele foi dormir em sua casa e, na madrugada, entrou no quarto da garota, então com 4 anos. “Não entendi quando começou a fazer aquelas coisas com as mãos e a boca”, lembra ela, que é médica e atende a casos como o seu em um hospital público do interior de São Paulo. Bianca ficou passiva e paralisada pelo medo. “E por certa curiosidade”, confessa. A filha contou aos pais, que expulsaram o menino. Porém, orientaram a garota a não falar sobre o ocorrido. “O pacto de silêncio pode gerar dificuldades para a criança no futuro”, alerta a psicóloga Desirèe Monteiro.
Debaixo do tapete
Um dia, Sofia, abusada pelo primo dos 6 aos 14 anos, deu um basta. Mas só revelou à família o que acontecia aos 26 anos, quando sucumbiu à terapia, embora desde os 15 já revelasse comportamentos recorrentes às vítimas de abuso: bebia demais e tentou se matar ingerindo remédios. “Elas ficam num estado de entorpecimento emocional”, revela o psicólogo Julio Peres, especializado em trauma.
O ginecologista e obstetra Jorge Kuhn, da Unifesp, constatou que certas dificuldades que as mulheres apresentam na hora do parto têm ligação com essas experiências. “Por exemplo, quando a musculatura do períneo [que fica entre o órgão genital e o ânus] está muito rígida”, afirma ele. Se percebe algum sintoma, como a dificuldade de relaxar num exame de rotina, pergunta, com jeito, se ela teve alguma experiência sexual negativa no passado: “Algum namorado meio estranho? Ou tio? Primo?”. Inicialmente elas dizem que não, mas, quando é o caso, acabam contando. Falar sobre o assunto é desconfortável, especialmente para quem não o superou.
E o que gera o trauma pode não ser o fato em si, mas a maneira de lidar com ele. “Se a mãe ou outra pessoa em quem a criança confia disser: ‘Isso é errado mesmo’, a menina não se questionará: ‘Será que sou louca? A culpa é minha?’”, revela Julio Peres. Isso porque os adultos, via de regra, abafam os casos. Tanto que a lei para esse tipo de crime contra menores de 18 anos assegura que qualquer um pode denunciá-lo à polícia ou ao Conselho Tutelar, e quem decide se abre o processo é o promotor do Ministério Público.
A família deveria, então, tirar os panos quentes da situação e encaminhar para tratamento quem abusou da criança – em apenas 5% dos casos conhecidos são mulheres. “Muitas vezes, o abusador sabe que é errado, mas não consegue parar”, pondera a psicóloga Karen Esber. Mas, como em geral nada é esclarecido, todos saem perdendo. “Trauma é atemporal. Mesmo que a pessoa não se lembre, para o cérebro é como se aquilo tivesse sido na semana passada”, explica Julio.
Ao contrário do que aconteceu com Sofia e Bianca, Maria* não chegou a ser abusada, mas assediada por um porteiro, aos 6 anos. Ele propôs que ela colocasse a mão em seu bolso e adivinhasse o que guardava ali. Em seguida, abriu o zíper e mostrou o pênis. Maria saiu correndo e passou o dia tentando entender aquilo.
Até que sua mãe, notando ela ensimesmada, quis saber o que havia acontecido. Quando ouviu a história, contou ao marido e à síndica, e o porteiro foi demitido. Se a mãe da menina tivesse duvidado, escondido ou não levado a filha a sério, o porteiro poderia continuar com as “brincadeiras”.
“Mesmo que a pessoa não se lembre, para o cérebro é como se aquilo tivesse sido na semana passada” Julio Peres, psicólogo
Só a transparência salva
Hoje, Sofia já não precisa de antidepressivo, mas continua com o ansiolítico. Ela atribui à experiência do passado o fato de ter sido “travada” sexualmente na adolescência. Agora, depois do tratamento psicológico e psiquiátrico, se considera “mais liberada na cama do que algumas amigas”. O atual namorado é pai de seu terceiro filho, de 5 meses – as outras filhas têm 16 e 9 anos.
Já Bianca desenvolveu um comportamento sexual aparentemente liberal, mas sem criar intimidade com os homens com quem saía. Só ano passado, depois da terapia, ela assumiu um relacionamento sério. Além disso, acredita que a experiência tenha a ver com sua compulsão para bebida e seu “pavio curto”, consequências comuns nesses casos – assim como vício em drogas.
O psicólogo Julio Peres enfatiza que, para se livrar do trauma, o primeiro passo é esclarecer. Estudos por ele publicados mostram o que acontece no cérebro de pessoas que tinham um trauma e se submeteram à terapia. “Antes, a área relacionada à expressão do medo aparecia superativada. E, depois, a maior atividade é a do córtex pré-frontal, associado à classificação, à capacidade de rotular a experiência”, explica ele. Ou seja, à medida que entendem o que aconteceu, os pacientes se libertam do trauma. “Quem passa por uma experiência dessas tende a ter mais profundidade nas relações, porque fica mais criterioso. Ao se tratar, pode criar vínculos mais genuínos”, aposta.
Sofia e Bianca toparam falar no assunto. Descobriram histórias semelhantes, mudaram o destino que parecia traçado e transformaram a ferida aberta em cicatriz.
*Sofia, Marcos, Bianca e Maria são nomes fictícios, usados para proteger suas reais identidades
**Nesta reportagem, a expressão “abuso sexual” refere-se a todos os crimes contra a dignidade sexual