Só ingeri meia xícara de café e andei com minhas sobrinhas no colo. Mas estava feliz
Era uma manhã de sábado. Estava saindo de casa para dar início à minha rotina predileta, que inclui começar o dia tomando café fora, armada de três jornais e acompanhada de meu objeto de obsessão, que, elegante como é, finge gostar da rotina tanto quanto eu.
Tinha acabado de arrumar a cama quando o telefone tocou.
"Tá muito ocupada?", minha mãe sempre começa assim.
"Estava saindo para tomar café da manhã", disse quase contrariada porque considero minha rotina sagrada a ponto de não querer sequer compartilhar a informação.
"Seu irmão não passou bem e teve que ser internado. Fabiana e eu estamos indo para o hospital. Não tem quem fique com as crianças. Você pode ir para lá?"
Quando, entre todas as pessoas lúcidas da família, sou eu a escolhida para ir cuidar de duas crianças de 5 meses é porque a coisa é bastante séria.
O que me fez sentir uma espécie de nervoso duplamente qualificado - um, pela saúde do garoto. Outro, pelo bem-estar das recém-nascidas, que teriam que ficar sabe-se lá por quanto tempo sob minha supervisão.
Entrei no carro e fui para a casa de meu irmão. Cheguei antes das dez e o que vi foi chocante: as duas meninas dormiam tranquilamente. Com elas, a única pessoa da casa que não rompeu em disparada para o hospital, uma babá.
Depois de saber que a situação de meu irmão estava controlada, fui até a cozinha preparar um café e fuçar alguma coisa para comer.
Mesmo na correria, tinha lembrado de pegar os jornais e o computador antes de sair; aquilo que se anunciava como um dia de puro caos estava se transformando em um sábado de deleites: sossego, leitura e muito café.
E tudo seguiu calmo até deixar de ser.
O primeiro resmungo foi de Carolina, a mais tranquila das duas. Diante de minha cara de pânico, a babá anunciou, mais para me fazer relaxar, que era apenas fome. E tirou a menina do berço a fim de alimentá-la. Foi quando meus temores se justificaram.
Acordada pelo resmungo da irmã, Larissa começou a chorar. Como a babá estava com Carolina, só me restava tirar Larissa do berço e lidar com a mais nervosa e inquieta e estridente das duas. Assim, abandonei minha xícara de café e uma torrada pela metade e, corajosamente, enfiei os braços no berço e coloquei aqueles 3 quilos de gente em meu colo.
Nessa hora o choro parou e, em seu lugar, vieram gritos que talvez tenham sido ouvidos em Minas Gerais. Enquanto isso, Carolina mamava tranquilamente no colo da babá, que, com o olhar, tentava me orientar a pegar a mamadeira e colocar na boca da criança.
O que se mostrou tarefa complicada, já que eu estava segurando a criança e, dada a força colossal de seus gritos, recolocá-la no berço era inconcebível. Por isso foi a babá, mesmo com os dois braços ocupados, que veio para o resgate e, sabe-se lá como, brotou na sala com uma mamadeira para mim.
Mimos e mamadeiras
Depois do que me pareceu uma série de infinitas tentativas de colocar o bico da mamadeira na boca da criança, ela finalmente resolveu me dar uma trégua e começou a sugar. Foram os 30 segundos mais silenciosos da minha vida.
Sem nenhum tipo de aviso, Larissa cuspiu o bico da mamadeira longe e reiniciou seu ritual de gritos e esperneios. Lembro de ter pensado que, se quando ela crescer resolver usar toda essa energia para o bem, poderá salvar o mundo.
Por reflexo, levantei e comecei a chacoalhar o esqueleto para cima e para baixo, como vejo em filmes, na esperança de que aquela sequência de movimentos fizesse os gritos pararem. Aprendi naquela manhã de sábado que, em certas ocasiões, esse tipo de requebra acaba inclusive piorando a parte aguda do choro.
E a babá veio para o resgate esticando os braços e me oferecendo Carolina como um presente dos céus enquanto retirava a barítona Larissa de meu colo.
Carolina, eu saquei imediatamente, é a reencarnação de Gandhi. Para compensar aqueles últimos 40 minutos de caos, a menina permaneceu quieta em meu colo, me encarando docemente, e sorrindo até, como quem entende que, entre mim e ela, era eu a mais necessitada de um mimo.
A rotina da mamadeira terminou e eu, vendo meus jornais em cima da mesa, cheguei até a esboçar um sorriso diante da iminente possibilidade de conseguir abri-los. Já passava do meio-dia, nem era mais hora de ler jornal, mas ainda assim eu me deleitava com a ideia de mergulhar na podridão do mundo, neles tão bem estampada diariamente.
Foi quando ouvi um resmungo. Não era possível. Elas já tinham comido. O que podia ser agora? "Precisamos trocá-las", sentenciou a babá. Eu até entendia a necessidade de trocá-las, só não consegui captar o uso da primeira pessoa do plural. "Você quer ajuda?", perguntei já bastante trêmula com a chance de ela responder afimartivamente.
Ela deve ter dito "sim" porque na cena seguinte estávamos nós duas no banheiro, cercadas por fraldas bastante sujas, segurando as perninhas daquelas pessoas miúdas para cima e passando algodão úmido em suas bundas, surpreendentemente potentes para aquele tamanho.
Mais uma vez, recolocamos as meninas no berço, e foi com expressão de terror que percebi que, embora Carolina dormisse, Larissa, de olhos abertos, se mexia, chutava o ar freneticamente e esboçava um bico. Situação agravada pela ausência temporária da babá, que teve que ir limpar o banheiro.
Éramos, portanto, apenas Larissa e eu, no mano a mano. E a constatação do mais dramático: ela tinha voltado a chorar. Alimentada, trocada, limpinha... aquilo só podia ser pessoal. Desafiada, enfiei as mãos no berço e saquei a garota de lá.
Andando pela sala com Larissa nos braços, requebrando o esqueleto, comecei a conversar com ela; era mais um desabafo, mas ela entendeu como um papo. E o choro deu lugar a uma espécie de resmungo, que eu optei por acreditar que era ela me respondendo. Até que, de repente, ela parou de resmungar e simplesmente me encarou. Assim, deitei no sofá, com Larissa em minha barriga, e respirei pela primeira vez nas últimas quatro horas.
Larissa não chegou a sorrir, talvez até hoje ninguém tenha arrancado coisa parecida dessa pessoa tão brava, mas fez as pazes comigo antes das três da tarde.
No fim do dia, depois de mais algumas sessões de mama-limpa-troca, fui resgatada por minha cunhada.
Não tinha comido nada, tinha bebido meia xícara de café e andado uns 10 quilômetros com elas nos braços em volta da mesa da sala, sem falar nos jornais e no computador, solenemente esquecidos. Ainda assim, estava completamente feliz. Que estranha sensação. Um dia todo dedicado àqueles seres miúdos que eu mal conheço e uma felicidade estúpida a me varrer a alma.
Foi quando saquei que tinha, mais uma vez na vida, me apaixonado. E agora, de cara, por duas mulheres - uma delas, como parece ser minha especialidade, bastante braba.
A carioca Milly Lacombe, 42 anos, é jornalista. Seu e-mail: millylacombe@gmail.com