por Micheline Alves
Tpm #53

Algumas de nós preferem não sentir dor. Para isso, têm como aliada a indústria farmacêutica: bolinhas aplacam o sofrimento e nos colocam em um estado constante de semianestesia. Temos medo de sofrer?

Vamos começar pelo óbvio: meninos e meninas não sentem as coisas do mesmo jeito. Todo mundo diz, por exemplo, que fisicamente as mulheres são muito mais resistentes. “Alguém que aguenta o parto aguenta qualquer coisa”, reza o senso comum, mesmo que os fisiologistas ainda não consigam explicar isso muito bem. Psicologicamente, não estamos tão bem na fita. Somos conhecidas como “as rainhas do drama”. Sofremos profundamente, esmiuçamos nossas dores, discutimos as relações, expomos fragilidades, nos descabelamos — e choramos, choramos muito mais do que eles. A morte de alguém, uma separação, uma dor de cabeça, um dente de siso, um tombo, um erro — tudo tem efeitos diferentes em homens e mulheres. (Nem vamos discutir aqui a cólica menstrual, essa indesejável exclusividade que ganhamos de presente, mal saídas da infância.)

Ainda não entrou para os registros desta editora a imagem de um homem chorando à mesa de trabalho. Em compensação, não há mulher que ainda não tenha sido vista aos prantos. Porque, ao contrário deles, a gente cutuca a dor. Enquanto eles preferem amigos em uma mesa de bar no afã de aplacar a angústia, nós sabemos enfiar a cabeça no travesseiro e simplesmente chorar. Na sequência, ligamos para uma amiga em busca de colo. Mas parece haver por aí uma geração que não está muito a fim de sentir. Por quê?

Mulher sofre mais? “A mulher é mais transparente. Mas isso não quer dizer que sofra mais”, avisa Alexandre Saadeh, psiquiatra do Hospital das Clínicas, de São Paulo. “Muitas vezes, aliás, o sofrimento deles é maior. Só que eles têm essa tendência a cair na noite, beber muito, transar com qualquer mulher. Tudo isso pode não levar a nada, mas é um jeito de lidar com a dor”, diz ele. Ok, então eles são mais práticos. Mas será que são mais felizes por isso? Será que não é melhor encarar a dor mais de frente, como a gente costuma fazer? “Mulher remói, rumina a dor, discute, e isso pode ser bom. Se é para extravasar, então tudo bem gritar, sofrer, deixar doer. Mas às vezes fica um culto à dor que é péssimo. Entrar em contato com a dor é uma coisa, cultuar é outra”, diz ele. 

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Modernas, poderosas... e deprimidas
“Mulher somatiza mais, põe mais no corpo as dores físicas”, continua Saadeh. Pergunto por que elas sofrem mais de depressão do que eles. Não é chute, é estatística: uma pesquisa do Cebrid, Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas Psicotrópicas, da Universidade Federal de São Paulo, atesta que no Brasil as mulheres consomem duas vezes mais tranqüilizantes do que os homens. O consumo desse tipo de remédio, aliás, atingiu níveis alarmantes no país: relatórios de vigilâncias sanitárias estaduais, também reunidos pelo Cebrid, mostram que em algumas cidades os antidepressivos são as drogas campeãs de vendas nas farmácias de manipulação. Qual a explicação para isso?

“A mulher tem que estar alegre, bonita, ter um homem, ter o iPod de última geração, ter tudo. Como é impossível conseguir tanta coisa, a frustração é inevitável. O resultado está aí: os antidepressivos são a categoria medicamentosa mais vendida no mundo. E a coisa mais fácil é sair com uma prescrição psiquiátrica de qualquer consultório médico”, diz Saadeh.

A descoberta dos antidepressivos como fórmula mágica para resolver todos os problemas (não à toa, o Prozac ficou conhecido como “a pílula da felicidade”) parece estar criando uma nova categoria: a de mulheres à prova de dor. Um breve passeio pelo Orkut, o site de relacionamento na Internet mais popular entre o brasileiros, dá uma boa amostra do fenômeno: reunidas em comunidades, milhares de pessoas trocam idéias sobre as “maravilhas” dessas substâncias. 

Fórmulas mágicas

Na comunidade “Fluoxetina, amo você”, do Orkut, o texto de apresentação diz: “Mais conhecida como Pílula Milagrosa, essa coisinha consegue te transformar numa pessoa muito melhor, com mais ânimo, paciência, carinhosa, FELIZ...”. Na mesma linha, a turma da “Eu amo o Rivotril” convoca o rebanho com a promessa de resolver qualquer revés. “Insônia? Depressão? Defendendo mestrado? Formando? Separando da pessoa amada? Desempregado? Crise de ansiedade? Distúrbio do pânico? Vamos conversar!” Resolvo aderir aos tópicos de discussão (aos medicamentos, ainda não). Discorrem sobre posologia, efeitos, mistura com álcool e, o que me espanta, maneiras de conseguir as pílulas sem receita médica. Uma mensagem que me chama a atenção avisa que não há nada a temer: “Não esquenta quanto à dependência, a fluoxetina não causa dependência, pois não age no sistema nervoso central. Algumas pessoas viram ‘criança’ se tomarem mais de 30 miligramas (digo, ficam de alguma forma frias ou sem tesão), então é bom prestar atenção. No mais, viva essa arma poderosa que nos faz mais felizes!”.

Pare de tomar a pílula

Mais adiante, encontro uma mensagem que informa o e-mail pelo qual podemos comprar o remédio. Não resisto e mando uma mensagem à autora do recado, Daniela, que concorda em conversar comigo por telefone. Descubro que ela tem 26 anos, estudou até o ensino médio, trabalha como freelancer fazendo pesquisas de opinião na rua e acaba de se separar — o marido, ela conta, não concordava com a obsessão da moça de emagrecer, muito menos com o coquetel de drogas que ela ingere diariamente. Descubro também que ela tem uma irmã, Patrícia, outra “fã da fluoxetina” — a substância que é a base do Prozac. Elas moram com a mãe em Itaquera, bairro da zona leste de São Paulo.

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Daniela foi apresentada à fluoxetina quando a mãe começou a tratar uma depressão. Diante do resultado positivo, resolveu experimentar. “Senti uma sensação de alegria logo no primeiro comprimido.” Um tempo depois, começou a tomar uma fórmula de emagrecimento — e pediu ao médico que incluísse na mistura a fluoxetina, cujos efeitos “positivos” ela já conhecia. Foi prontamente atendida. Hoje, não vive sem seu coquetel. “Me sinto muito bem. Tanto que estou enfrentando a separação muito melhor do que se não estivesse tomando nada.” Faço a pergunta óbvia: como saber uma coisa dessas, se ela não experimentou a separação sem a ajuda do remédio? “Ah, antes eu não tinha coragem, não conseguiria fazer isso. O remédio me deu força para pegar minhas coisas e sair de casa.” Mas esse tipo de remédio não afeta a libido? Sim, ela confirma — mas não liga. “Houve perda da libido, mas coisa mínima. Acho que vale a pena, já que as vantagens do remédio são tantas.”

Pseudofelicidade

Converso com uma amiga de 28 anos e perfil bem diferente — é uma profissional bem-sucedida, viajada, ganha bem, a família é rica, o namorado é ótimo —, mas consumidora da mesma substância. Tudo começou no consultório da endocrinologista, que, ao ouvir seu relato sobre crise de ansiedade, não hesitou em receitar fluoxetina. Reparem: quem receitou foi a endocrinologista, não o psiquiatra. Ao consultório dela, minha amiga nem precisou voltar: ela apenas pede as receitas para continuar comprando a poção mágica — que lhe custa 20 reais por mês em uma farmácia de manipulação, onde esse tipo de remédio sai mais barato. “Tomo todo dia de manhã, mas poucos miligramas. É mais por segurança, para não ter mais crise de ansiedade. Tenho medo de ter taquicardia, de evoluir para um pânico, essas coisas”, explica. A lógica é mais ou menos esta: antes que o problema apareça, já vamos tomando o antídoto, como precaução. Se dá certo? Há controvérsia: “Quando tive a crise e tomei, ajudou. Então, acredito nele hoje. Mas, para falar a verdade, não dá muito certo, porque às vezes tenho crises à noite... Mas tô bem melhor do que antes”

Contradição, teu nome é mulher

Ciente de que a solução para todos os problemas do mundo não há de estar no balcão da farmácia da esquina, fui ouvir a opinião de quem é totalmente contrário a esse tipo de tratamento.

Cristóvão de Oliveira, terapeuta ayurvédico, é famoso em São Paulo por aplicar nos pacientes — entre eles, muitas celebridades — uma massagem que nada tem de relaxante: os adeptos relatam crises de choro e muita dor durante a sessão, quando ele procura expor os “nós” que a pessoa formou ao longo da vida. A finalidade é fazer a pessoa vivenciar a dor, para então se livrar dela.

Para Cristóvão, essa “fuga da dor” que as pessoas estão buscando é na verdade um adormecimento dos sentidos. Afinal, não é só dor que elas deixam de sentir, mas uma série de sensações — prazer inclusive. “Não sou contra remédios, mas é preciso usálos de maneira sábia. Uma dor profunda, crônica, precisa de remédio pra que se possa lidar melhor com ela, até conseguir superá-la. Primeiro é preciso sair do surto, e às vezes isso só é possível com remédio”, admite. “Mas temos que prestar atenção nessa pseudotranquilidade, nessa pseudofelicidade que é vendida em comprimidos hoje.”

Sofrer para crescer

Essa ideia de felicidade obrigatória que assola a sociedade moderna, aliás, vem sendo questionada por muita gente (graças a Deus). No início de fevereiro, fez barulho nos Estados Unidos uma entrevista publicada pela revista Time com Steven Hayes, psicólogo de 57 anos que prega que “a felicidade não é normal”. O que poderia ser só uma frase de efeito está causando alvoroço no meio acadêmico, já que Hayes contraria a maioria das terapias atuais: em vez de orientar os pacientes a eliminar os pensamentos negativos para atingir o bem-estar, ele ensina que é preciso aceitar a dor e o sofrimento como parte da vida. Seu colega brasileiro Alexandre Saadeh concorda. “Não dá para eliminar a dor das nossas vidas. É o famoso ‘no pain, no gain’: sem sofrer, sem crescimento.

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Não há amadurecimento possível sem que se passe por experiências dolorosas. Ou a gente vai viver como Peter Pan, em busca da felicidade plena na Terra do Nunca?”, questiona. Cristóvão vai além e descreve o parto, que está no nosso imaginário como a maior dor que o corpo pode experimentar, como o momento de maior prazer que uma mulher pode alcançar. “A coisa mais linda é ver a mulher entrando em estado de parto, depois de oito centímetros de dilatação, quando o bebê vai sair. Nesse estágio, ela vai para um outro lugar, fica em êxtase. Pense no maior orgasmo do mundo e multiplique por 1000: é o parto”, diz ele, que acompanhou ativamente o nascimento dos três filhos, todos de parto normal — e sem anestesia. E, para quem está pronto para dizer: “Ah, ele diz isso porque não sentiu na pele”, sinto informar que a mulher de Cristóvão, Adriana, assina embaixo. “É assim mesmo.” Chegamos a um ponto importante: também no quesito parto vivemos uma era de “só sente dor quem quer”: nos hospitais particulares brasileiros, 80% das crianças nascem de cesariana — uma cirurgia que foi criada como salvação, para ser usada em casos complicados, mas que virou regra em nossas maternidades (na Europa e nos Estados Unidos não é assim). Será que daqui a uns anos nem a dor do parto as brasileiras vão conhecer? Já existe um movimento para reverter esse quadro: alarmados com as estatísticas, os principais órgãos de saúde do país — como a Agência Nacional de Saúde, a Associação Médica Brasileira, o Ministério da Saúde e várias ONGs — estão começando a formar uma verdadeira cruzada para reduzir o número de cesáreas. 

Insuportável?

A iniciativa tem apoio de ginecologistas e obstetras como Renato Kalil, que atua em dois dos hospitais mais importantes de São Paulo e defende que as cesarianas só sejam realizadas se forem realmente necessárias. “As mulheres precisam se dar conta de que não estão se livrando da dor, mas apenas trocando uma dor por outra. Elas não vão sentir nada no momento do parto, mas, passado o efeito da morfina (o anestésico que as equipes médicas costumam usar), experimentam uma dor muito mais chata, demorada, seguida de um mês de limitações”, explica o médico.

Para ele, o problema é que as mulheres hoje vão para a maternidade totalmente despreparadas. “O trabalho de parto está evoluindo e ela pensa: ‘Se agora a dor já está horrível, imagine daqui a pouco’. Aí, desiste. Só que essa dor horrível já é o limite. Ela sofre por antecipação, e o que vem pela frente não tem nada de absurdo”, diz ele, que não é contra o uso de anestesia. “O que dói é a dilatação do colo. Quando a cabeça da criança já está forçando para sair, dá aquela cólica chata. Essa dor sim pode ser aliviada com anestesia. Não precisa ficar naquela gritaria de novela.” Há séculos sabemos que somos o gênero da contradição. Os homens não nos entendem, até porque a gente, na maioria das vezes, não se entende. Exatamente por isso não seria um desperdício deixarmos de sofrer? Se tão bem podemos suportar a dor, e se é ela que nos faz crescer, por que abrir mão desse benefício optando por saídas fáceis? Será que não está na hora de entender que não temos a obrigação de sermos felizes o tempo todo, e que felicidade não vem em pílulas?

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