Amor, maternidade e casamento, na visão de uma revolucionária

por Milly Lacombe

“O amor não precisa de nenhuma proteção, ele é sua própria proteção”

 

Em 1910, a anarquista Emma Goldman publicou “Marriage and Love” (Casamento e amor). Ela tinha 40 anos, já havia sido presa sob acusação de incitar uma manifestação popular, ainda seria presa outra vez até finalmente ser deportada dos Estados Unidos, onde morava desde que deixou a Rússia.

Goldman tinha uma dezena de qualidades, muitas delas envolviam ideologias e pioneirismos, mas seu texto sobre amor e casamento talvez seja o mais revolucionário já escrito até hoje.

Dia desses um trecho me caiu às mãos, e, em êxtase, eu lia e relia como uma maníaca as coisas que essa mulher escreveu há mais de cem anos. 

Goldman começa dizendo que a noção popular sobre amor e casamento, a de que ambos preenchem uma mesma necessidade humana, não se baseia em fatos, mas em superstições. “E se é verdade que alguns casamentos se baseiam em amor, e que alguns amores seguem fortes depois do casamento, eu digo que é assim apesar do casamento, e não por causa dele”.

Não custa lembrar que estamos em 1910, e que as palavras foram escritas por uma mulher. Goldman segue:

“Desde a infância, é dito às meninas que casar é o objetivo final, mas pouca coisa é explicada sobre o que é de fato o casamento já que seria falta de respeito ensinar a uma garota qualquer coisa sobre relações maritais”. Por isso, ela segue, a futura esposa e mãe é mantida em total ignorância sobre seu único recurso no campo competitivo – sexo.  E entra numa relação que se pretende eterna apenas para se descobrir chocada e repelida por seu instinto mais natural, sexo.

Para Goldman, a maior praga do casamento reside na ideia de que ele serve para proteger a mulher. “Essa é uma ideia que revolta, é um insulto, é degradante à dignidade humana”.

E aí Goldman entra em outro de seus territórios e compara o casamento ao capitalismo. “É como aquele outro arranjo patriarcal – o capitalismo. Ele rouba o homem de seu brilho, impede seu crescimento, envenena seu corpo, o mantém em ignorância, em pobreza e em dependência, e então instituiu caridades que acabam por sugar os últimos resquícios de respeito próprio que ainda existiam”.

O texto segue nesse tom, ou talvez até mais forte. Goldman diz que o casamento faz a mulher se tornar uma parasita, uma dependente absoluta. Que aniquila sua consciência social, paralisa sua imaginação e então impõe sobre ela uma doce proteção, o que é uma transgressão à condição humana.

A reflexão a faz vociferar contra a noção de que para ser mãe a mulher precisa antes casar. “Amor, o mais forte e profundo elemento da vida, o precursor da esperança, do estado-de-graça, do êxtase; amor, o definidor de todas as leis, de todas as convenções; amor, o mais livre e mais poderoso modelador do destino humano – como pode uma força assim ser sinônimo dessa pobre semente inventada pela igreja, o casamento?”

Em fúria, ela pergunta o que é o amor livre se todo o amor é, afinal, livre. “Os homens já conquistaram todas as nações, mas nem todos os exércitos do mundo podem conquistar o amor. O amor transforma o pedinte em rei. Sim, o amor é livre, e ele não pode duelar em nenhuma outra atmosfera”.

E aí ela entra em outro ponto espinhoso até os dias de hoje: o direito de escolher o que fazer com seu corpo 

“O amor não precisa de nenhuma proteção, ele é sua própria proteção. Desde que o amor dê origem à vida, nenhuma criança ficará abandonada, ou faminta ou desesperada por afeto. Sei que isso é verdade. Conheço mulheres que se tornaram mães em liberdade e através dos homens que amavam. Poucas crianças frutos de casamentos infelizes são tão amadas quanto essas”.

"Conheço mulheres que se tornaram mães em liberdade e através dos homens que amavam. Poucas crianças frutos de casamentos infelizes são tão amadas quanto essas”.

Mas, no caso de o mundo ser assim, ela pergunta, quem lutaria as guerras se a mulher se tornasse mãe apenas quando desejasse e em liberdade? “A raça! A raça!, gritam o rei, o presidente, o capitalista, o padre. A raça precisa ser preservada e a mulher confinada a ser uma mera máquina reprodutora. O casamento é nossa única forma de impedir que a mulher acorde para sua vida sexual”. 

Enquanto eu lia essas linhas precisava ficar me lembrando de que estamos em 1910, o que deixa tudo ainda mais  fascinante. Quanto do que somos hoje, mesmo as mais feministas entre nós, não está ainda envenenado por essas noções patriarcais do que deve ser a mulher e sua condição feminina?

Goldman segue.

“A mulher não quer mais ser mais co-responsável pela produção de uma raça de adoentados e apodrecidos seres humanos, que não têm nem a força nem a coragem moral para se livrar das algemas e da escravidão. Ela quer menos filhos, e crianças melhores, criados dentro de um ambiente de amor e de liberdade”.

E então ela se prepara para o golpe final.

“Em nosso atual estado pigmeu, o amor é um estranho a muitas pessoas. Não compreendido e à sombra, ele raramente cria raízes. O amor chora e geme e sofre com aqueles que necessitam dele, mas que carecem da capacidade de se elevar a seu cume. Só que um dia homens e mulheres chegarão ao cume dessa montanha, e lá se encontrarão enormes e livres, prontos para receber os raios dourados do amor. Se o mundo um dia der à luz o companheirismo e a unidade, não será o casamento, mas o amor que fará o papel de pai e de mãe”.

Não sei vocês, mas eu me arrepiei quando li. Um brinde a essa mulher tão sublime e tão atual, Emma Goldman.

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