Não vejo TV com frequência. E nem é porque acho que emburrece ou ”estraga a vista...
Eu faço parte daquele grupo de pessoas que nao vêem TV com frequência. E nem é porque acho que emburrece ou "estraga a vista". Vejo pouca televisão por três simples razões:
1 - prefiro música e literatura (em prosa);
2 - existe a internet, que me dá a (ilusão da) possibilidade de montar minha própria "programação". Útil ou inútil, doce ou cítrica, dependendo do dia da semana ou oscilação hormonal do mês;
3 - como tenho pouco tempo livre, prefiro alguma atividade, no sentido literal mesmo. Assistir TV é algo passivo demais e eu sou multi-tasker desde pequena. Sendo assim, para evitar o tédio, prefiro fazer algo que me permita ouvir música, ao mesmo tempo que vejo um time-lapse do céu do Yosemite, escrevo um texto e tiro alguma dúvida médica de amiga via Whatsapp.
Com toda essa chuva toda do feriado, a internet ficou sem funcionar até agora há pouco no meu apartamento. Provavelmente, o pessoal da empresa de internet resolveu testar minha capacidade de adaptação a adversidades. Eu sentei na frente do sofá e fui tentar me moldar à nova (mesmo que temporária) realidade.
Como nerd e ex-leitora ávida da Barsa, escolhi caminhar pelo supostamente seguro eixo Discovery-NatGeo. Em cerca de duas horas, passei da menina com excesso de pêlos, que foi carinhosamente apelidada de menina-loba na cidade e na escola, para a mulher inglesa com pernas gigantes e seu dilema entre se submeter ou não à amputação devido às deformidades e ferimentos decorrentes delas, à obesa mórbida que, de tão grande e pesada, não consegue limpar as partes íntimas. Suspirei e fui em frente, mas acabei jogando mesmo a toalha quando caí em algo chamado Complexados, um programa que "expõe doenças embaraçosas ao público, pois nada é repugnante demais para especialistas que “já viram de tudo”. O tema do episódio? Vaginas prejudicadas esteticamente e o drama que isso causa em suas donas.
Não sei por quanto tempo eu dormi (ou naveguei na internet) para que a TV tenha se tornado essa versão moderna daqueles circos americanos do século XIX com seus "freak shows". Mas isso tudo me faz lembrar das aulas práticas de Semiologia, no terceiro ano da faculdade, quando a gente ia pro hospital e o professor fazia um grupo de quinze ou vinte alunos, um a um, chegar perto de um paciente para ver seu olho amarelo pela icterícia de uma hepatite, ouvir um sopro diferente em seu coração ou palpar a enorme massa pulsátil em seu abdome. Nunca deixei de pensar no que passava na cabeça daquele ser humano naquela hora em que um bando de estudantes novinhos olhava, se impressionava (nada como a inexperiência e espontaneidade...) e examinava algo que provavelmente já causava enorme medo e sofrimento a ele. OK, o propósito era válido. Num futuro que já virou presente, aqueles usariam aquelas "lições" para ajudar outras pessoas, mesmo que não ele. Agora, quantas voltas a Terra deu em volta do sol até que se tornasse um aceitável passatempo de domingo à noite exibir deformidades humana, sem propósito científico algum, para para pessoas comendo pipoca na frente de suas TVs de tela plana, fazendo piadinhas ou cara de nojo?
O que posso dizer é que mesmo que a televisão não estrague minha vista nem emburreça, eu vi que ela me entristece. E que, enquanto os canais de variedades continuarem a ser canais de deformidades, a minha vai continuar desligada.
meu Twitter: @mperroni
** pretendo começar um podcast em que responderei três a cinco perguntas sobre saúde/medicina por "episódio". Se você tem alguma dúvida, mande email para duvidas.palpitacao@gmail.com **