A inimiga da verdade

por Redação
Tpm #68

Convicção. Mesmo com o exemplo trepidante de meus pais, sempre acreditei no casamento. Não no do papel, no do contrato, muito menos no do altar, mas na vida levada a dois

 
O ocorrido se deu por volta de três da ma­nhã. Eu dormia o sono dos justos – por­que todos os sonos são justos aos 10 anos – quando fui acordada pelos gritos vin­dos do quarto de meus pais. Minhas irmãs já estavam com seus olhi­nhos arregalados, sen­tadas em suas camas. Eu, a mais velha, e por­tanto mais acostumada com as brigas do ca­sal, tentei acalmá-las. Não adiantou: Nininha, a menor, desatou em um choro sem pre­ce­den­­tes. Enfurecida, invadi o quarto dos adultos e rom­pi em uma fúria verbal que nem eu sabia pos­­suir. Dizia, para espanto dos dois, que me olha­vam catatônicos, que era uma fal­ta de res­peito aquele tom elevado na madru­ga­da, que não agüentávamos mais tanta dis­cus­são e que eles decidissem, de uma vez por to­das, se a me­­lhor coisa a fazer era continuar ou separar. Porque nós, as quatro crianças (incluí meu irmão por conta própria já que o menino ti­nha 3 anos e pouca eloqüência), não agüentaríamos vi­ver as­sim. Disse tudo isso, mais ou menos assim, e bati a porta. Fui mo­vida pelo que hoje chamaria de a coragem da ignorância. Não sei o que me deu. Mas sei que, assim que fechei a porta do quar­to, per­cebi que estava enrascada. A matriarca não demoraria a sair da­li e me devolver, aos berros, à condição infantil. Para meu es­­panto, não acon­teceu. Aos 10 anos, saí soberana de uma situação adulta. Abso­luta, coloquei minhas irmãs na cama e fui, or­gu­lho­síssima de mim, também dormir.

Não me lembro se meus pais voltaram a interpretar seus pa­péis pirotécnicos no meio de uma noite calma, mas lembro de pen­­sar que a primeira sensação de achar que eu havia, com aquela inesperada lição de moral, salvado o casamento, rapidamente se mostrou falsa. Eles continuavam a se es­pe­tar, se cutucar e a se tra­tar silenciosamente de forma regular. “Maria Emilia, diga a seu pai que o Ernesto ligou”, falava minha mãe na mesa de jantar, com meu pai ao lado de­la. “Pai, o Ernesto ligou”, repetia eu, por di­ver­são. “Eu já falei com ele”, respondia meu pai, olhando para mim. “Mãe, o papai já fa­lou com ele”, dizia eu, quase rindo, para de­ses­pe­ro de minhas irmãs, que antecipavam a pancadaria. “E eu com isso?”, grunhia minha mãe, levando o garfo à boca.

Apesar do mau jeito, nunca se separaram. Quando o velho morreu, em 2001, mi­nha mãe perdeu o rumo, o rebolado e a com­pa­­nhia de sábado à noite. Ainda assim, até ho­­­je, ao pensar na relação deles, me pergunto se teriam sido mais ou menos felizes se ti­ves­­­sem op­ta­do pela separação e escolhido se­guir em vôo solo. Não sei, e não há como saber.


Um ou dez anos, que seja eterno

Mesmo com o exemplo trepidante, sempre acreditei no casa­men­to. Não no do papel, no do contrato, muito menos no do altar, mas na vida levada a dois. Quando, aos 16 anos, en­tendi que era gay, nun­ca me passou pela ca­beça não casar, não dividir um teto, não com­partilhar o supermercado. Não havia, e talvez não haja até hoje, em minha concepção, outra alternativa a não ser a de chegar em casa e en­contrar alguém me esperando para saber o que vamos jantar. Anos de terapia me ensinaram que, muitas vezes, a solitude é a si­tua­ção recomendada. E, embora tenha amigos e amigas que parecem ser bastante realizados dessa forma, ainda acho que é impossível ser fe­liz sozinha. Para o bem ou para o mal, preciso dividir as contas, bri­gar pela decoração da sala, sair com você para comprar as plantas da casa, passar a noite de Natal dividida entre famílias, freqüentar as fes­tas de aniversário de sua sobrinha, sentar ao seu lado, num do­min­go qualquer, e so­nhar com a casa que teremos na montanha. Que dure um ano, dois ou dez, mas que, nesse período, seja eterno.

É por isso que, por mais que eu ame você, não posso continuar. Me chame de careta, de intransigente, de intolerante. Estou apenas sen­do coerente com minhas convicções. Para ser completamente fe­­­l­iz, quero saber que vamos, você e eu, todas as noites para o mes­mo endereço, sem que seja preciso combinar com antecedência.

Era apenas isso o que eu queria: casar com você, freqüentar os seus, deixar você freqüentar os meus. Isso, e saber que, se o aque­cedor quebrasse, poderia ligar no meio da tarde e pedir para vo­­cê resolver. Afinal, o aquecedor seria tão seu quanto meu. Con­ve­nhamos, só o fato de poder passar para você esses perrengues mun­danos já justificaria a união. Mas você não quer assim. E tá tu­do certo. Porque, como dizia Nietzsche, se a grande inimiga da ver­dade não é a mentira e sim a convicção, então você terá me co­locado na estrada certa.

fechar