A força da imagem
Para Estela Renner existe na vida uma coisa que é inegociável: o direito das crianças, a capacidade de cada criança exercer integralmente sua criatividade e liberdade. Mas a cineasta paulistana sabe que se trata de um direito que todos os dias é roubado – especialmente, mas não apenas, das crianças menos privilegiadas. Estela faz documentários que buscam chamar a atenção exatamente para este problema. Aos 43 anos, já dirigiu três filmes contundentes que têm como tema central a infância: Muito além do peso (2011), Criança, a alma do negócio (2012) e O começo da vida (2016). “Acho que sou uma pessoa otimista, idealista e engajada”, diz. “Me interesso por fazer filmes que vão direto ao coração.”
Embora em suas maiores investidas cinematográficas Estela tenha batido de frente com problemas imensos – o da alimentação, o da publicidade e a carência de investimento social, privado ou estadual, na primeira infância –, ela faz isso com delicadeza e com impressionante capacidade para comover. “Eu acredito na bondade das pessoas. A mídia todos os dias nos mostra um mundo de medo e intolerância, mas tem um outro mundo que é abundante e que fica escondido”, diz. Em parceria com a amiga Ana Lucia Vilella e Marcos Nisti, do Instituto Alana, uma ONG que trabalha em defesa das crianças (Nisti também é sócio na produtora Maria Farinha Filmes), Estela busca proteger a criança brasileira de uma infância miserável — seja por culpa da alimentação que, repleta de açúcar, envenena; da publicidade, que engana e abusa; ou da falta de oportunidade para crescer em um ambiente saudável e poder, assim, se desenvolver como ser humano.
O começo da vida
A timidez de Estela é quase palpável, mas ela aproveita assuntos que a apaixonam para deixar o nervosismo de lado por alguns minutos. Quando fala do sofrimento de crianças, ela o faz com enorme paixão e vigor. “Existem coisas que me tiram do sério”, diz. “Por exemplo, saber que o consumo de remédios tarja preta para criança aumentou 400%. O que fazemos com uma criança agitada hoje? A gente diz ‘fica quieta’ e dá remédio.” Estela sabe que se seguir puxando esses fios vai cair sempre no mesmo lugar: um sistema econômico que privilegia mercadorias em detrimento de pessoas e que gera enorme desigualdade social. Filha de dentistas, foi estudar cinema e artes plásticas nos Estados Unidos, onde morou por sete anos e trabalhou como roteirista. Um dia entendeu que sua trilha era contar histórias que carregassem valor social. “A partir do momento que deixamos de viver em comunidade para viver em sociedade, algumas coisas se perdem. Nessa hora acabamos abandonando as crianças. Elas são nossas, são de todos”, diz.
Em O começo da vida, lançado pela Unicef no dia 5 de outubro deste ano com exibição simultânea em 190 países, uma das histórias que mais comovem é a de Simone, uma mulher de baixíssima renda que tem 12 filhos e é ex-usuária de drogas. Quando Simone começa a contar sobre sua infância, é impossível não se emocionar: cresceu sem oportunidades, vendo a mãe apanhar do pai todos os dias, vivendo em ambiente miserável. “Ela não nasceu querendo ver a mãe dela apanhar. A gente escuta o que Simone tem a dizer e imediatamente a entende”, diz Estela. “A pergunta que quero deixar no ar é: seu filho brincou? Teve acesso à natureza? Porque esses são direitos das crianças, e muitas delas hoje vivem sem isso.”
Estela acha que a única forma de transformar a sociedade é não se afastar da política. “Política é tudo à nossa volta. Política é viver em sociedade. A gente tem que ocupar a política”, diz a cineasta, que hoje mora em São Paulo e tem três filhos, de 9, 13 e 15 anos. “Houve uma época em que eu me preocupava com o que poderia dar a eles materialmente. Mas meus filmes também acabam me transformando e hoje sei que de tudo o que posso dar a eles nada passa pelo material. E entendo também que ser mãe é a maior aventura de uma vida.” Sua próxima investida vai incomodar uma outra dessas indústrias titânicas, a do petróleo: Estela vai falar sobre mudança climática e aquecimento global.