Vai ter festa, sim

Renan Dissenha Fagundes
Natacha Cortêz

por Renan Dissenha Fagundes
Natacha Cortêz
Trip #250

O mundo pós-atentados e o Brasil da corrupção e da lama tóxica nos lançam um olhar inquisidor: é possível ainda festejar?

 Com sua feição transgressora, a festa sobrevive a tudo, sempre, subvertendo fronteiras entre o real e o extraordinário, o centro e a periferia, a casa e a rua. Listamos festas pelo Brasil. Manifestações que, em seus espaços quase fictícios, reproduzem a dinâmica de nossa vida social, com o que temos de mais diverso e também com aquilo de mais forte que nos une – a sexualidade, o jogo, as possibilidades de encontros (e desencontros).

Baile da camiseta molhada - Rio de Janeiro 

A intenção essencial das festas é “desenraizar o ego”, “estar em fusão” com o outro – é o que diz o sociólogo francês Michel Maffesoli, autor de O instante eterno. Uma modalidade molhada desses princípios entra em ação na Pool me In. A festa rola desde o verão de 2014 no Rio, em casas providas de piscina e jardim, onde DJ e convidados dançam da hora do almoço até o fim do dia. No som, “funk, pop bagaceira, new age, disco land e Daniela Mercury”, diz Fernando Schlaepfer, DJ e cofundador do coletivo fotográfico I Hate Flash – que registra as farras. Fernando conta que a Pool me In é temática e por isso o público é variado. “Já tivemos concurso da camiseta molhada e de salto ornamental, já fizemos algo na vibe anos 20 e todo mundo veio meio melindroso.” A entrada e os preços das bebidas variam de acordo com a locação e o patrocinador. 

Tava no fluxo - São Paulo

Bailes funk na rua não são uma novidade, mas a movimentação ganhou força – e um novo nome – nos últimos anos na periferia de São Paulo, onde foram rebatizados de “fluxos”, festas meio organizadas, meio espontâneas, que rolam todos os fins de semana nos bairros periféricos da capital paulista. “Sempre existiram esses bailes, mas com o funk ostentação, a galera queria mostrar status, então já não era mais tão bacana ir para a rua. Queriam ir para camarotes, pegar pulseiras”, conta Renato Barreiros, diretor dos documentários Funk ostentação – O filme, de 2012, e No fluxo, lançado no fim do ano passado. “Agora, um pouco porque cansou e um pouco porque a realidade econômica é outra, mudou tudo.” Essas festas são locais, festas de bairro, com quase todos os participantes (muitos menores de idade) sendo conhecidos entre si. “É meio assim: queremos juntar a galera no sábado à noite. Vamos aonde? Um baile na esquina. Chama o Marcos, que tem um carro com sonzão. Alguém leva pen drive. Aí criam eventos no Facebook e cada um convida os amigos”, diz.

Para respirar melhor - Santa Catarina

Rodas de conversas com professores de história, geologia e arqueologia. Teatro de sombras, karaokê, snacks veganos e bandas de artistas locais. Tudo isso durante quatro dias em um sítio em São Francisco do Sul, uma ilha no litoral norte de Santa Catarina.

Esse foi o cenário do Não vai ter Coca, festival independente criado por um grupo de amigos afeitos à natureza. “É um espaço de respiro, de transbordamento, onde cada um pode ser quem é sem julgamentos”, explica Marcel Abe, um dos organizadores do evento. “Ele é importante pra todas as pessoas que se sentem sufocadas com a vida distante do natural, do orgânico.” Na primeira edição, 950 pessoas passaram pelo festival, com ingressos para os quatro dias vendidos por R$ 60. As oficinas, atividades e apresentações estavam inclusas no preço.

A festa antes da festa - Espírito Santo

“A festa incita a um abandono do individualismo, quando pede proteção mágica contra um mundo que, ao contrário do que assegura o credo burguês, não é nem linear, nem racional. [...] As festas afirmam o mundo como o espaço do acidental, do paradoxal e do miraculoso”, escreveu o antropólogo Roberto DaMatta.

Todas as manhãs do dia 1º de janeiro, cerca de 20 negros da região de Conceição da Barra, no extremo norte do Espírito Santo, saem pelas ruas com coreografias ao som de pandeiros e tambores em uma festa religiosa chamada Ticumbi. Mas é na noite anterior que é feita outra festa, maior e mais mundana, apenas para membros da comunidade — e registrada na Vila de Itaúnas pelo repórter fotográfico Bruno Miranda: um forró que dura a madrugada inteira. “É uma festa em que eles se preparam para o Ticumbi, um momento de celebração com comida, bebida e muita dança”, diz.  

Poesia concreta - São Paulo

Festas grátis e ao ar livre já existiam em São Paulo, até com certa dificuldade, mas muitas outras surgiram nos últimos anos. O movimento foi consolidado no começo de 2014, com o SP na Rua, um evento organizado pela Secretaria da Cultura do município que reuniu coletivos e festas em uma balada para 15 mil pessoas, entre 10 da noite e 6 da manhã, nas ruas do centro histórico. “Queríamos fazer um grande encontro público reunindo as festas que já existem”, conta Karen Cunha, diretora de eventos da Secretaria. “No começo foi fácil fazer essa curadoria. Mas agora está complicado, muita coisa nova vem surgindo.” Ainda em 2014, e depois este ano, o SP na Rua virou a festa de abertura do Mês da Cultura Independente, realizado em setembro. “O paulistano tem uma visão bizarra de si mesmo, de que não quer sair na rua”, diz Karen. “As pessoas querem ir pra rua, sim.”

 O maior show da terra - Pará

Na esteira do sucesso de artistas do tecnobrega como Gaby Amarantos, o Brasil descobriu as festas de aparelhagem, com seus sistemas de som e luzes grandiosos. A Super Pop (foto) é uma das maiores delas. A tradição dessas festas, no entanto, é bem mais antiga. A aparelhagem Rubi, por exemplo, na ativa até hoje, começou em 1950. “Elas seguem o que é tendência”, conta o DJ Alex, que apresenta na rádio 99FM Belém o programa Na onda, em que divulga uma agenda de em média 30 eventos por semana. “Hoje, as aparelhagens tocam electro-house, brega, muito arrocha, sertanejo, forró, tudo misturado.” As maiores dessas aparelhagens têm mais ou menos a mesma estrutura de som e LEDs — o que as diferencia é o “comando”, o espaço no qual os DJs se apresentam e falam com o público. O da Super Pop, por exemplo, é o famoso Águia de Fogo, com o formato do pássaro.

 Eternos Vips - Rio de Janeiro

Em Junho de 2014, o fotógrafo espanhol Sebastián Liste registrou o 82º Grande Prêmio Brasil de Turfe no Jockey Club do Rio de Janeiro. Na mesma época, Sebastián foi a outras festas frequentadas por celebridades, empresários, artistas, jogadores de futebol e socialites. Em outubro do mesmo ano, a série produzida foi publicada na revista norte-americana New Yorker junto com observações do espanhol sobre suas incursões nos eventos cariocas. Para ele, a elite que fotografou no Jockey e em hotéis luxuosos “parece estar vivendo uma festa eterna”, alheia ao que acontece no resto do país. “Estão ali apenas para ver e serem vistos”, disse à New Yorker. 

As minas negras, as monas e a liberdade - São Paulo

 “A balada é mais bonita, mais livre e mais erótica do que a vida, e no entanto está totalmente articulada, econômica e socialmente, à vida como ela é”, fala o psicanalista Tales Ab´Saber. Essa dinâmica está no centro da Don’t Touch My Hair.

O porão da faculdade de direito da Universidade de São Paulo (USP) é a casa – ao menos por hora – da festa, que segue para sua quarta edição e que foi criada por um coletivo de mulheres, “majoritariamente negras e lésbicas”, conta a blogueira Jéssica Hipólito, uma delas. Na pista, R&B, funk, hip-hop, dancehall e pop latino. No entanto, com uma prioridade: cantoras negras. Espere ouvir Rihanna, Beyoncé, Nicki Minaj, Tati Quebra-Barraco, MC Carol, Ludmilla, Bonde das Maravilhas, Karol Conká, M.I.A, Whitney Houston, Aretha Franklin, Diana Ross, Gaby Amarantos, entre outras.

O nome da festa foi pensado com a intenção de “dar visibilidade para a estética negra como ato político”, diz Jéssica. “Nossos cabelos são vistos como exóticos, onde brancos se acham no direito de enfiar a mão. Don’t Touch My Hair é sobre empoderamento, especialmente.” Para a blogueira, o que faz a festa incrível é seu próprio público, formado por mulheres, gays e quem mais sentir empatia com eles. Nas três edições anteriores, o porão da SanFran atingiu lotação máxima, 800 pessoas, e fila na porta. Para entrar na DTMH, informa Jéssica, o valor é  R$ 15 e não são bem­-vindos “racistas, misóginos, gordofóbicos, lesbofóbicos e  transfóbicos”.

 

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