Cientistas e engenheiros se voltam para o natural atrás de soluções biomiméticas
Enquanto a crise ambiental avança, cientistas, designers e engenheiros se voltam para o mundo natural em busca de soluções biomiméticas. a criadora do termo, janine benyus, acredita que imitar a genialidade dos animais é a coisa mais racional a ser feita
Caro macaco bípede, ou leitor, como preferir: já pensou em voar longas distâncias praticamente sem atrito com o ar, gastando quase nada de combustível? Ou em tecidos que mudam de estrutura de acordo com a temperatura e não precisam ser lavados para se manter limpos? Melhor do que isso! Construir prédios, fabricar plástico, comida, gerar energia como forma de despoluir a atmosfera, o solo, a água... Quanto mais a economia cresce, mais limpo o mundo fica. Já pensou? Talvez você não, mas milhões de espécies no planeta só pensam nisso há 3 bilhões de anos. E, desde 1990, uma macaca bípede, que habita o estado de Montana nos EUA, chamada Janine Benyus também. Atrás dela veio uma crescente horda de cientistas, engenheiros, empresários, estudantes que percebeu o poder transformador de uma ideia estranhamente original: copiar outros seres vivos.
Ou melhor: “Buscar inspiração no mundo natural para resolver nossos problemas”, desenvolve doutora Benyus, explicando o que significa na essência o termo que cunhou para batizar seu livro de 1993 e definir de maneira clara uma nova abordagem da relação entre humanos e natureza, Biomimética. O princípio é simples, mas radicalmente oposto à cultura e à base de nossa economia. Consiste em olhar para a natureza como fonte de conhecimento, não de recursos. “Em vez de aprender sobre a natureza, aprender com a natureza. Reconhecer que estamos cercados de gênios”, diz na entrevista que concedeu à Trip de sua casa/escritório nos EUA.
É de lá que Janine comanda seu instituto de biomimética e seu grupo de consultoria. Uma mistura muito bem sucedida de negócios com uma sincera missão ambiental. Para ela a biomimética é bem mais do que uma mera disciplina, mas uma forma de engajar a espécie humana no mesmo projeto das demais espécies: garantir nossa sobrevivência enquanto melhoramos o ambiente a nossa volta. “O que eu acho genial nos demais seres vivos é que eles estão focados em dar mais condições para a vida de um modo geral”, resume. Hoje, qualquer platelminto sabe que nossa civilização está na exata contramão.
Para Janine essa derrapada evolutiva tem a ver com algo simples, no fundo. “As pessoas que pensam o mundo e nossa economia não foram treinadas em biologia. Não percebem que as soluções que procuram já existem.”
É compilando exemplos e elaborando palestras tão inspiradoras quanto os frutos da seleção natural que o instituto vem difundindo essa transformação de paradigma. E criando não apenas soluções econômicas (como a ideia de realocar recursos financeiros para a conservação ambiental, como por exemplo royalties para as espécies “imitadas”), mas possíveis escapatórias tecnológicas para a armadilha climática que está mais do que anunciada.
Para os biomiméticos em ascensão, reconhecer a nossa limitadíssima capacidade e a genialidade dos demais animais pode salvar o mundo. Mas temos tempo? “Eu escolho ser otimista, mesmo diante dos fatos”, Janine suspira. “Certamente vamos passar por uma peneira da evolução. Muitas espécies vão desparecer. A questão é se nós vamos escapar.” A resposta, para ela, depende muito de o ser humano assumir de uma vez por todas que somos apenas mais uma espécie no planeta. E que não temos todas as respostas nem toda a inteligência na natureza. E usar ao máximo um dom que nenhum outro animal tem: somos ótimos imitadores.
Como você se tornou divulgadora da biomimética?
Eu sempre fui uma escritora de história natural. Já havia lançado cinco livros antes do Biomimética, sempre sobre como os organismos se adaptam ao ambiente. Quando olhei para trás, vi que estava fascinada com o que os organismos eram capazes de fazer. E como são capazes de fazer isso de forma tão eficiente, muito mais do que nós, na verdade. E percebi que o mundo natural é um mundo que funciona e é extremamente sustentável e fértil. Eles voam com pouquíssimo combustível, chegam ao fundo do mar com sistemas muito simples. E vi que deveríamos imitar esses processos. Eles estão sendo feitos há mais de 3 bilhões de anos. E isso é muito tempo de pesquisa e desenvolvimento. Essa foi a maior revelação que tive. Comecei a pesquisar isso mais a fundo em 1990. E a procurar especificamente as pesquisas que tinham esse preceito.
E não havia essa mentalidade naquela época?
Veja só. Uma das primeiras pesquisas que encontrei era sobre fotossíntese. Como poderíamos imitar uma folha para criar células de captação solar. E para mim foi um choque perceber que aquele era o primeiro estudo tentando copiar o princípio da fotossíntese naquela circunstância. O primeiro! Ficou muito claro que precisávamos urgentemente fomentar essa forma de pensar.
Então biomimética não é exatamente uma ciência, mas um ponto de vista?
Eu vejo como uma metodologia. É uma prática que parte das seguintes perguntas: “O que eu quero resolver?”. E depois: “Como a natureza lida com esse problema?”. Você pode ser desde um cientista procurando uma maneira menos tóxica de fabricar fibras a um agricultor que quer descobrir uma maneira inteligente de segurar o solo. Ou descobrir como reduzir o atrito em um avião. Sempre há um jeito na natureza que sabe como voar sem fricção, manter o solo estável ou fazer fibras sem toxinas. Não interessa sua disciplina, você sempre pode usar esse método com chances enormes de conseguir respostas.
E como você compara a biomimética ao modo tradicional de pesquisa e relação com a natureza?
A cultura ocidental industrial vê a natureza como um armazém. Que está lá para tirarmos coisas de dentro. Essa mentalidade enxerga a natureza como algo a ser explorado e não compreendido. A economia que nós temos até hoje usa a natureza. E o que a biomimética propõe é uma maneira radicalmente diferente de enxergar isso. Não queremos “usar” nada. Mas aprender como a natureza produz e processa as coisas que queremos. Por exemplo. Em vez de moer conchas para fazermos cerâmica, cal... nós podemos aprender como se formam as conchas, e o organismo continua no oceano. A gente só explorou a ideia.
E hoje, 20 anos depois de você lançar o termo e o livro Biomimética, como está essa metodologia?
Desde que eu escrevi o livro, muita coisa aconteceu nesse ramo. Existem, literalmente, milhares de estudos hoje em dia que estão deliberadamente olhando para o mundo natural em busca de conhecimento. Na tentativa de imitar algo para melhorar nossa própria tecnologia. Há muita gente voltando para escola para aprender isso. Empresas começaram a contratar biológos para seus quadros. Está se tornando uma nova carreira também.
Me soa estranho que não estejamos fazendo isso há muito mais tempo. Porque, no fundo, parece óbvio.
Exato! É verdade que algumas pessoas fizeram isso no passado. Se você olhar estudos do Leonarde da Vinci, de como ele tentava entender o mecanismo pelo qual os pássaros voavam, por exemplo. Ou Buckminister Fuller, que é outro que reconheceu a natureza como o lugar certo para buscar respostas. Sempre houve algumas pessoas. Mas nunca foi uma disciplina.
Você fala em suas palestras que estamos cercados de gênios na natureza. O que você quer dizer com isso?
Os organismos são incrivelmente bem adaptados ao seu ambiente. A razão pela qual eu menciono gênio, ou engenhosidade, é porque eles estão constantemente melhorando as condições para suas crias. Estão extremamente focados no que será bom para a continuidade da vida e encontraram um meio de suprir suas necessidades, manter-se vivos e, ao mesmo tempo, melhorar o ambiente onde os demais organismos vão viver depois. A vida cria condições para a reprodução de mais vida. Isso para mim é genial.
De acordo com essa visão, os humanos seriam uma espécie estúpida.
E isso é o mais importante. Se nós fizéssemos nossas escolhas, o que vamos construir, que materiais escolher, o que comprar, como vamos vender, baseados no que é melhor para a vida... tudo se transformaria, literalmente. E tudo isso vem apenas de uma simples mudança de visão. Hoje nós fazemos nossas escolhas baseados em preço. Claro que temos que pensar em coisas que sejam viáveis economicamente. Mas para mim os preços das coisas também deveriam refletir o que é bom para a vida. Escolher somente pelo preço não mostra todo o CO2 emitido, o aquecimento global. Então não estamos escolhendo pensando no futuro.
Fale de um projeto atual que represente bem a importância da biomimética.
São muitos. Uma empresa chamada Calera está imitando a química que cria corais. Eles capturam CO2 da água, combinam com minerais, cálcio, magnésio, para criar sua estrutura. O que a empresa faz é pegar o CO2 de chaminés de fábricas e combinar com água marinha para criar alternativas para concreto. Hoje, de 6% a 8% de todo o CO2 emitido no mundo vem da fabricação de concreto. Agora poderemos construir prédios e, ao mesmo tempo, retirar esse gás estufa da atmosfera. A mimética dos corais pode, sozinha, inverter o impacto ambiental da construção civil.
Mas em geral são empresas novas investindo nisso. Há interesse das grandes corporações, os gigantes do petróleo e as grandes empreiteras, em biomimética?
Nós temos 250 clientes como GE, Boeing, Kraft, Nike, Levis, Procter & Gamble. Se esses caras estão se interessando é um ótimo sinal. O problema é que essas pessoas que planejam o mundo nunca foram treinadas em biologia. Um cientista de materiais da Shell nunca teve a menor ideia de como uma teia de aranha é elaborada. Veja... Se você notar, existem apenas cinco polímeros fundamentais para a estrutura de quase tudo no mundo natural. E animais fazem designs extremamente interessantes com esses poucos materiais para torná-los rígidos ou flexíveis, elásticos, resistentes, degradáveis etc. Todos facilmente recicláveis no ambiente. Temos mais de 350 polímeros para fazer nossas coisas. Quando precisamos de uma nova função, inventamos outro. Se você pegar um besouro, por exemplo, sua casca é feita de um material simples. Mas quando precisa ser permeável ele fabrica com poros, quando precisa ser duro ele simplesmente arranja o polímero de outra forma. Quando precisa ter alguma cor, ele não fabrica pigmentos, que podem ser tóxicos. Ele apenas muda a estrutura da última camada para criar cores através da refração. Isso com um material apenas. Se um besouro consegue, nós também podemos.
Mas você acha que conseguiremos a tempo? Ainda temos como evitar essa catástrofe ambiental que se anuncia?
Otimismo é uma escolha. Eu escolho ser otimista apesar do que, infelizmente, já sei... Se você ler os relatórios saberá com o que estamos lidando: uma peneira evolutiva, sexta grande extinção em massa no planeta. Vamos certamente perder muitas espécies. Resta saber se a espécie humana vai passar nessa peneira. Se vamos conseguir deixar viva uma parte suficiente da Terra para que nós passemos dessa fase. Hoje a cultura vive uma grande reação imunológica a esse processo, se você observar quanta gente está dedicada a preservar o meio ambiente e mudar nossos hábitos. É uma corrida, na verdade, para reverter o curso dessa catástrofe. A única coisa a fazer, para mim, é acreditar que somos uma espécie com uma incrível capacidade de adaptação. Eu sei que temos capacidade tecnológica e científica para reverter esse processo. As coisas vão certamente ficar loucas no mundo nos próximos anos. Mas eu escolho crer que vamos superar isso.
O problema é que não nos enxergamos como uma espécie?
Isso mesmo. Precisamos urgentemente entender que somos uma espécie, esquecer nossas divisões políticas, nossas fronteiras. Isso não é um esporte, em que estamos competindo uns com os outros. Estamos nesse barco juntos.
E qual nosso papel como espécie nesse sistema?
Essa é uma pergunta muito importante. O que nós sabemos, eu não tenho dúvida, é que somos natureza também. E também sei que temos um dom especial: a habilidade de aprender, de registrar o que aprendemos, para que outras pessoas possam entender isso sem precisar passar por todo o processo de novo. Então podemos olhar o passado e entender o que nos trouxe aqui. E especular com algum grau de certeza o que vai acontecer no futuro. Podemos escolher para onde essa história vai. Outra coisa muito importante é que nós podemos escolher também de onde vamos aprender. Somos grandes imitadores, e por isso não precisamos esperar nossos genes mudarem para mudarmos. Minha sugestão é que a gente olhe para a natureza e tente imitá-la, ser como ela. E começaremos a nos perguntar como uma espécie consegue permanecer viva. Poderíamos pensar cidades inteiras dentro do ecossistema onde ela se instalou. São Paulo, por exemplo, foi construída na mata atlântica. O que essa floresta faz? Ela gera, entre tantas coisas, água limpa que corre para outros lugares, e abastece outro sistemas. Por que uma cidade não pode fazer isso? Criar um modo de captar, limpar, fazer fluir água limpa para fora da cidade, para que facilite a proliferação de vida além daquele lugar. Quando a gente conseguir pensar assim, teremos achado nossa vocação. E hoje estamos em nossa adolescência. Somos egoístas. E nossa função, se quisermos continuar aqui, é amadurecer.
Você vê um lado místico, espiritual nessa missão?
Esse é um universo feito de tijolos simples, seguindo um princípio de seleção rigoroso, focado na evolução da vida. Algo absurdamente consistente, principalmente porque dispensa uma inteligência cósmica criadora. A biomimética muda nossa hierarquia em relação à natureza. Porque você sente na prática o quanto é difícil fazer o que uma folha ou um animal faz. Porque você tenta e falha. Dá muito trabalho copiá-los. E parece tão simples quando eles fazem. E isso me fez ser reverente à natureza. Não a um Deus.