Cansados da vida de publicitário, dois surfistas de Berlim se jogam em uma viagem quase insana, que poucas pessoas já fizeram: surfar as ondas do Círculo Polar Ártico em pleno inverno
O vento fustiga as paredes mal isoladas do trailer. Na escuridão, já perdemos a noção da hora: poderia ser meio-dia, mas também o início da noite. Nós estamos sentados em nossa casa sobre rodas e nossos dedos semicongelados mal conseguem segurar uma xícara de chá. Nesse momento me pergunto como pudemos ter uma ideia tão maluca. Mas a aventura está a todo vapor. Não dá para voltar atrás. Ao nosso redor, até onde a vista alcança, um deserto de gelo, surreal e fascinante ao mesmo tempo.
Mas vamos começar do começo: “nós” significa eu, Rich [Richard Fieseler, 40 anos], e Seb [Sebastian Burgold, 33]. Dois surfistas comuns de Berlim, uma cidade sem praia. No dia a dia, trabalhamos para agências de publicidade. Seb como fotógrafo e eu como estrategista. Há mais ou menos um ano, ficamos de saco cheio da rotina e de gastar nossas energias com a próxima campanha revolucionária. Nos invadiu um forte desejo de dar um sentido à vida e encarar desafios reais. Deixar de lado o “feijão com arroz”. Fugir das multidões monótonas, em meio às quais serpenteamos dia após dia no transporte público. Deixar para trás as inúmeras e infindáveis reuniões em que o pensamento criativo é reduzido ao mínimo e acaba se tornando obsoleto. Estávamos – e ainda estamos – em busca de algo que realmente representasse a vida. Sair da zona de conforto. Adquirir lembranças que durassem para sempre e tivessem uma importância real.
No fim do ano passado, surgiu a ideia de viajarmos para surfar em um lugar diferente. Enquanto boa parte dos surfistas vai em direção ao sul, escolhemos o Círculo Polar Ártico como destino, mais especificamente a cidade de Bodø, na Noruega, um pouco ao norte da latitude 66°. Nosso tempo de preparação era curto e, como aventureiros amadores, não sabíamos direito o que iríamos encarar. Mas no dia 1º de janeiro, ainda um pouco de ressaca depois da noite de ano-novo, estávamos sentados na cabine do nosso trailer, ansiosos por aquilo que nos aguardaria no extremo norte. Tudo o que tínhamos para resistir ao inverno norueguês: dois botijões de 11 litros de gás, um conjunto de correntes para neve e uma pá dobrável.
A travessia de balsa de Kiel, na Alemanha, até Gotemburgo, na Suécia, durou 17 horas bastante monótonas. Entre bingos e caça-níqueis, tentamos matar o tempo. Da cidade sueca, fomos pela bem construída rodovia E6 até a capital da Noruega, Oslo. Encontramos Alex, um norueguês que conhecemos há muitos anos. Com sua ajuda, queríamos escolher a melhor e mais rápida rota rumo ao norte. Alex logo jogou um balde de água fria em nosso plano de visitar a geleira Folgefonna pelo caminho e aproveitar uma ou outra sessão de snowboard nas proximidades. Explicou que, lá em cima, nas montanhas, haviam caído mais de 8 metros de neve nos últimos dias. “Com essa van de vocês, nem pensar.” Por fim, venceu o bom senso. Decidimos continuar nossa rota pelo leste, rumo a Bodø. Ainda tínhamos uma noite em meio à civilização, antes de o negócio ficar sério e nossa tranquilidade acabar.
GELADA HIGHWAY
No dia seguinte, quando saímos da periferia de Oslo, aos poucos nos demos conta do que nos esperaria nos próximos milhares de quilômetros: aquilo que na Europa Central conhecemos como rodovias federais, na Noruega não passam de trilhas sinuosas em maciços montanhosos. No verão, talvez até seja idílico, mas no inverno é uma pista de gelo única e sem fim. Nevava sem parar. Uma vez na estrada, não havia como voltar. Tratores do tamanho de uma casa tinham empurrado a neve das últimas semanas para a beira da rodovia, formando uma margem de 1 metro de altura, o que inviabilizava qualquer saída ou até mesmo uma rápida parada no acostamento. Só dominamos as curvas derrapando. Não dá para dizer qual das duas variantes é a mais difícil, se subindo ou descendo a montanha. Alex estava certo. Era o fim do nosso sossego. Bem-vindos à aventura fora da zona de conforto!
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À medida que nos aproximávamos do norte, as condições se agravavam. Mais neve, mais gelo, mais frio, estradas piores – aos poucos, até a luz do dia se despedia. Uma leve luminosidade a partir das 10h30, e às 14h30 já estava escuro de novo, como breu. Apesar da calefação, o trailer já não se aquecia; por isso, à noite, tínhamos de nos enfiar em sacos de dormir com todas as roupas de inverno. O silêncio se estendia. As brincadeiras do início cederam lugar a conversas preocupadas. A viagem agora era uma mistura de tortura sem fim e medo constante. Longe de toda civilização, a única coisa que ainda nos movia era nossa tensão. A lógica nos deixou completamente na mão. Mesmo que conseguíssemos chegar a Bodø, teríamos de fazer o caminho de volta. Ainda bem que não tínhamos tempo para pensar muito.
Depois de dez dias em pistas de gelo escuras, paramos diante do desfiladeiro mágico. O “portão” para o Círculo Polar. Contudo, estava fechado. Guiados por um veículo de apoio da polícia rodoviária norueguesa e rebocados com outros carros atolados, entramos no comboio que passaria pelo desfiladeiro. Uma pequena placa coberta de neve marcava o ponto que, nos últimos dias, havia se tornado uma obsessão: 66° 33’ 55’’. Felizes até não poder mais e com lágrimas nos olhos, seguimos o comboio pela paisagem branca, imersa na neblina. Nenhum lugar no mundo pode ser mais surreal do que esse. Dois caras comuns de Berlim no Círculo Polar Ártico, em pleno inverno. Pior do que isso o restante da viagem não poderia ficar. A primeira parte havia sido superada. A segunda, o surf, ainda estava por vir. Até Bodø, na costa oeste, seria um pulo. À medida que nos aproximávamos da Corrente do Golfo, ia ficando um pouco mais quente. Porém, isso não influía em nada na situação climática. Depois do gelo e do frio, seguiram-se tempestade de granizo e neve. Chegando a Bodø, encontramos Mario Rodwald no aeroporto. Havíamos combinado com antecedência passar uma semana no norte da Noruega com o tricampeão europeu de kitesurf.
Um breve “olá”, uma checagem rápida da previsão dos ventos e, em 30 minutos, já estávamos sentados na primeira balsa rumo a Lofoten, onde as condições para os próximos dias se mostravam mais otimistas. A travessia é dura. No dia seguinte, por causa da previsão, até mesmo o serviço de balsas foi suspenso. Nessa época do ano, o arquipélago de Lofoten se apresenta em toda a sua rudeza e hostilidade. Até mesmo os moradores evitam sair de casa, e os turistas se perdem na paisagem acidentada. Cada segundo é de tirar o fôlego. Nada pode ser planejado. O tempo muda em poucos minutos: confiar na previsão é uma roleta-russa. Nós mesmos nos tornamos parte da força da natureza e nos fundimos ao cinza infinito que nos cerca. Éramos como astronautas desafiando as condições em seu pequeno habitáculo, levados pela esperança de que o vento não virasse o trailer de 3 toneladas.
Apesar da previsão otimista, as condições para o surf eram modestas. Atravessamos o arquipélago na costa ocidental, sempre em busca de boas ondas. No entanto, em circunstâncias como essas, mesmo um experiente campeão europeu tem seus limites – e nós, mais ainda. Um mergulho na água e já se começa a sentir dor de cabeça. Após 30 minutos, mãos e pés perdem a sensibilidade, e a percepção se torna imprecisa. Mesmo a camada mais espessa de neoprene não ajuda. A correnteza é muito forte e, à fraca luz da superfície, difícil de distinguir. Mal dá para calcular o risco. Mesmo assim, surfamos nas ondas do Círculo Polar. Não como se estivéssemos em Bali. Nada de sessões sem fim em águas cristalinas, e sim paredes pretas e ameaçadoras no lusco-fusco. Ultrapassamos nossos próprios limites, superamos o medo e encaramos a natureza.
BATISMO DE FRIO
Após uma semana de experiências fantásticas com Mario, o deixamos novamente em Bodø. Agora, somos surfistas do Ártico. Sem medalhas nem menções, mas sabemos que o fizemos. Ao nosso lado, há apenas umas poucas outras pessoas neste planeta.
Restava-nos a viagem de volta. Deveria ser mais fácil. Era só atravessar a Noruega rumo à Suécia e, depois, seguir para o sul, passando pela Lapônia. Do ponto de vista técnico, as rodovias suecas são melhores do que as norueguesas, mas não levamos em conta um problema: a -25 ºC, o diesel congela no tanque. Depois de tanto esforço, o desastre absoluto. Colocamos o aquecimento no mínimo, economizamos energia e, em pensamento, nos preparamos para o pior. Após oito horas intermináveis, finalmente chegou o guincho. O período em que o esperamos mais pareceu uma luta pela sobrevivência no frio, no meio do nada. Depois dessa última pausa forçada no hotel e um novo filtro de diesel, conseguimos chegar a Malmö e seguir para Berlim.
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O que restou? Seis mil e quinhentos quilômetros de pistas de gelo, 35 horas de balsa, quatro países, nevascas, avalanches, tempestades de neve, frio e uma eterna escuridão. Lembranças de um tempo indescritível e a confirmação de que, às vezes, só a viagem já pode ser o destino. Tendo partido para descobrir um pedaço surreal da Terra, encontramos nós mesmos. Desde que voltamos, vemos muitas coisas de outra perspectiva. Tentamos organizar nossos dias da maneira mais intensa possível, enxergamos nosso ambiente com outros olhos e percebemos que, com o passar do tempo, já não funcionamos em nosso antigo mundo. Fomos contagiados. E queremos mais. Mais daquilo que espera cada um de nós lá fora. O corpo está de volta, mas a alma ainda se encontra lá em cima, no norte, além dos 66 graus de latitude.
*Tradução Karina Jannini
Créditos
Imagem principal: sehnsucht-berlin.com