por Ricardo Calil
Trip #168

Em FilmeFobia, o cineasta Kiko Goiffman coloca pessoas fóbicas diante de seus piores medos

Kiko Goiffman descobriu que tinha fobia de sangue aos 7 anos. Era noite de Natal, seu nariz começou a sangrar de repente, e a família levou-o correndo ao hospital. O médico de plantão, que estava meio bêbado, colocou um pano com um líquido em uma de suas narinas, não exatamente com delicadeza.

Kiko desmaiou na hora. Foi o primeiro de uma série interminável de apagões. Eles se repetiriam nas aulas de biologia, nas lições de primeiros socorros da educação física, nos momentos em que deparava com cortes e arranhões, em si mesmo ou nos outros.

No dicionário Houaiss, fobia é definida como “estado de angústia, impossível de ser dominado, que se traduz por violenta reação de evitamento e que sobrevém de modo relativamente persistente, quando certos objetos, tipos de objeto ou situações se fazem presentes, imaginados ou mencionados”.

Para a psicologia moderna, um dos tratamentos possíveis para uma fobia é encarar aquilo que gera essa forma extremada de medo. Foi justamente isso que Goiffman decidiu fazer, 33 anos depois da descoberta. Mas muitos dirão que ele exagerou na dose.

Diretor de documentários premiados como Morte densa, 33 e Atos dos homens, Goiffman enfrentou sua fobia em duas experiências radicais. Em uma delas, foi colocado diante de uma TV de cachorro com frangos pingando sangue; o líquido escoava por tubos que circulavam a cabeça do cineasta; o ambiente era preenchido por sons que remetiam a uma aula de biologia; suas pálpebras foram presas com esparadrapos, para que não pudesse fechar os olhos, em uma cena que lembrava Laranja mecânica. Ele não resistiu e desmaiou.

Na outra, ele jogou pôquer com o crítico e cineasta Jean-Claude Bernardet. Detalhes importantes: as cartas vinham com imagens de cortes profundos em partes de um corpo feminino, as fichas eram saquinhos plásticos com sangue de boi, e a sonoplastia incluía barulhos de acidentes de carro. Em certo momento, Bernardet estourou os sacos e jogou o sangue na cara de Goiffman. Claro, ele apagou novamente de olhos abertos. Em ambos os casos, ele recobrou aos poucos a consciência, lembrou onde estava e então gritou “Corta!” para sua equipe.

Os “intérpretes” vieram de três grupos: fóbicos que encararam seus medos, atores que representaram fobias e atores fóbicos com reações reais ou encenadas

As duas experiências fazem parte de FilmeFobia, novo trabalho de Goiffman e um dos projetos mais difíceis de classificar do cinema brasileiro recente. O cineasta é apenas um dos personagens que enfrentaram seus piores medos diante da câmera para a produção. No total, há cerca de 20 fobias registradas no filme: de morte, esperma, lesma, anão, ralo, borboleta, pombo, celular, agulha, penetração, cobra, cabelo, botões, palhaço, fogos de artifício, cachorro, avião, rato, multidão...

Ritual de confronto

Assim como Goiffman, cada um dos personagens foi submetido a um sofisticado ritual de confrontação com suas fobias – que incluía traquitanas inusitadas criadas pela artista plástica Cris Bierrenbach (que também tirou as fotos que ilustram esta reportagem), situações sugeridas pelo roteirista Hilton Lacerda (que ainda fez um blog com o diário das filmagens) e sons aterradores tocados ao vivo pelo compositor Lívio Tragtenberg.

À frente da trupe, estava Bernardet, no papel de cineasta que conduz os experimentos com os fóbicos. E, por trás, como um deus ex machina, havia ainda Goiffman, dirigindo um suposto making of, que, na verdade, é o produto final de FilmeFobia.

O projeto nasceu de uma frase atribuída por Goiffman a Bernardet: “A única imagem possível de verdade é a manifestação de um fóbico diante de sua fobia”. A partir dessa premissa, o diretor lançou um site na internet para reunir relatos de pessoas fóbicas. Com os relatos em mãos, Goiffman e Lacerda criaram o roteiro do filme e partiram para a escalação do elenco.

Os participantes do filme vieram de três grupos: fóbicos (dispostos a encarar suas fobias, alguns deles encontrados pelo site), atores (que representariam seus medos para a câmera) e atores fóbicos (cuja reação poderia ser real ou encenada).

No filme ou na entrevista para esta reportagem, o cineasta prefere não revelar a quais grupos pertencem os personagens, para que o espectador ou o leitor não saiba qual momento foi ficcionalizado e qual foi apenas documentado. Como o Chacrinha de um show de horror, Goiffman veio aqui para confundir, não para explicar.

“FilmeFobia é meu primeiro longa de ficção, embora tenha elementos documentais. Se fosse um documentário puro, eu seria preso”

“Eu considero FilmeFobia meu primeiro longa de ficção, embora ele contenha elementos documentais. Se fosse um documentário ‘puro’, eu seria preso”, diz Goiffman rindo. De qualquer forma, ele cercou-se de cuidados (além da precaução básica do consentimento de todos os envolvidos): um enfermeiro foi contratado para acompanhar as filmagens feitas em uma casa em São Paulo (ele precisou entrar em ação em duas ou três seqüências), um psiquiatra foi entrevistado para explicar os riscos terapêuticos dos experimentos (foi ele quem disse que encarar a fobia é uma das formas de tratamento), senhas foram criadas para que os participantes pudessem interromper os rituais em caso de pânico (a palavra era sempre o nome do envolvido, algo que nunca seria esquecido).

Reação física

Em primeira mão, Goiffman apresentou à Trip algumas seqüências de FilmeFobia – que acaba de ser finalizado e começará a rodar o circuito de festivais nacionais e internacionais, antes de estrear comercialmente no ano que vem. A partir do primeiro impacto das imagens, é possível fazer algumas observações:

  1. Poucos filmes são capazes de despertar reações tão físicas no espectador quanto FilmeFobia, obrigando-o a compartilhar a angústia, o asco ou o terror sentidos ou representados pelos personagens.
  2. O embaralhamento entre realidade e ficção funciona perfeitamente, a ponto de ficar muito difícil saber se um personagem está sofrendo ou representando. Mas é possível afirmar com segurança que os desmaios de Goiffman foram reais. Em uma das seqüências do filme, Bernardet mostra algumas cenas em um monitor a Zé do Caixão (sim, o personagem, não o criador, José Mojica Marins) para avaliar a “atuação” dos participantes. Ele aprova o desempenho de Goiffman (“parece que ele foi estuprado por um bando de negões”), mas reprova o fóbico de ratos, que se deitou sobre uma espécie de estrado infestado pelos pequenos roedores (“o pau dele estava meio duro, o que demonstra que ele não estava com medo”).
  3. As situações imaginadas pela equipe – e, em especial, as traquitanas criadas por Bierrenbach – impressionam tanto pela originalidade quanto pela crueldade. O fóbico de pombos, por exemplo, vestiu um terno com pães presos ao tecido e enfiou-se em um cercado com aves famintas. O fóbico de anões foi amarrado em uma praia deserta com uma luneta presa a um dos olhos que o obrigou a encarar a lenta aproximação de um pequeno homem nu que terminou por agarrá-lo. A fóbica de cabelos foi colocada nua e besuntada de óleo diante de um ventilador que jogava fios em sua direção. A fóbica de agulhas teve um espelho preso a seu rosto que a obrigava a olhar para o teto, de onde desciam placas com enormes seringas em sua direção. E assim por diante.
  4. Além de Goiffman, a presença mais impressionante em cena não é a de nenhum dos fóbicos, mas sim de Bernardet, o crítico e cineasta franco-brasileiro que escreveu ensaios fundamentais sobre o cinema nacional, como Cineastas e imagens do povo, e roteirizou filmes importantes como O caso dos irmãos Naves e Um céu de estrelas. Com problemas de visão que podem levá-lo à cegueira, ele aparece tomando uma aflitiva injeção no olho. Seu drama é criar imagens marcantes o suficiente para que possam ser guardadas na memória após a perda da visão. Bernardet, o personagem, tem muito de Bernardet, o homem. Mas é exatamente igual a ele. O crítico deu o nome de “autoficção” a esse tipo de trabalho.

Ao ser questionado sobre as motivações para fazer um filme com tantas implicações pessoais para os envolvidos e que poderá ser visto por alguns como sadomasoquista, Goiffman responde: “Uma das razões eu só descobri durante o teste de um ator. Ele disse: ‘A fobia me atrapalhou a vida inteira. O filme é uma forma de fazer algo de útil com ela’. Isso também vale para mim, com toda certeza.

“O tema da fobia é essencial para pensar o mundo contemporâneo. Nós vivemos em ambientes extremamente fóbicos”

Além disso, o tema da fobia me interessa porque é essencial para pensar o mundo contemporâneo. Nós vivemos em ambientes extremamente fóbicos, em espaços cada vez mais hostis para os seres humanos. Conheço muita gente que é fóbica ou tem síndrome do pânico ou simplesmente vive angustiada.

E, por fim, eu gostaria de entender o medo como um instrumento de dominação política. Nós podemos entender algumas sociedades, como a americana ou mesmo a brasileira, a partir desse temor irracional da violência”.

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