Ser honesto é difícil na rede

por Ronaldo Lemos
Trip #182

Para ser honesto na internet é preciso muita confiança, mas a recíproca não é verdadeira

É triste, mas o estado atual da economia digital acaba punindo quem é honesto. O tema já foi bastante discutido, com ótimos artigos de gente como Cora Rónai e Hermano Vianna. Mas vale retomar alguns pontos importantes nesta edição da Trip sobre Honestidade.

Existe uma fórmula simples que poderia revolucionar a economia digital, tornando a vida de todo mundo mais fácil. Mas incrivelmente, mesmo depois de mais de 15 anos de expansão da internet, ela nunca foi testada pra valer. Essa fórmula diz o seguinte. Para competir com a pirataria é preciso três coisas: preço realista, catálogo ilimitado e portabilidade total.

Sobre o preço, não é preciso dizer muito. Até hoje não existe um serviço amplamente disponível de conteúdos digitais que permita pagar por assinatura. Pior ainda, para o mercado de música parece também não existir a lei da oferta e da demanda. Os preços, em vez de flutuarem por fatores econômicos, são tabelados, estipulados de forma arbitrária (um CD que ninguém quer comprar pode continuar custando R$ 40 do mesmo jeito). Por essa razão, o preço da música digital vendida no Brasil é praticamente o mesmo do praticado nos EUA, ainda que a renda e o tamanho do mercado brasileiros sejam algumas vezes menores do que os americanos.

Sobre o catálogo, a mesma história se repete. Tecnicamente, é possível criar um gigantesco banco de dados que permitiria ter acesso a tudo o que existe em música, livros e filmes. Isso só não acontece porque não se investiu como se deveria na questão de licenciamentos. Cada empresa é dona do seu catálogo, que deve ser licenciado individualmente e não se comunica facilmente com outros. Esse problema precisa ser resolvido do lado de quem detém os direitos. É preciso criar um sistema de metalicenciamento, que permita a todos os catálogos serem negociados de forma coletiva, muito mais racional e amigável ao consumidor.

Apple e restrições
Por fim, a questão da portabilidade. Aqui fica evidente como se pune quem é honesto. Quem de boa-fé paga pela música, filme ou texto que adquire online muitas vezes enfrenta travas tecnológicas e sistemas fechados para ter acesso ao conteúdo adquirido. É um contrassenso. Quem obtém os mesmos conteúdos ilegalmente não enfrenta nada disso. É algo que vai em sentido contrário ao interesse do consumidor. Quando alguém paga por conteúdo, quer ter o direito de usá-lo em qualquer sistema, do jeito que bem entender. E não estou falando aqui apenas dos tradicionais DRMs aplicados aos arquivos musicais, já em desuso. Algo similar acontece com sistemas mais complexos que são incompatíveis entre si. Por exemplo, o sistema da Apple (iPod e iPhone), que depende totalmente do iTunes e discretamente impõe inúmeras restrições para o seu uso. Quem já tentou sincronizar o iPod e o iPhone com diferentes computadores e não conseguiu sabe bem do que estou falando.

Desse jeito, para se manter honesto é preciso enfrentar muita raiva e frustração. É como se a relação de confiança entre consumidores e fornecedores tivesse de se aplicar apenas unilateralmente. Consumidores digitais devem confiar nos fornecedores (inclusive fornecendo dados privados, números de cartão de crédito, CPF e outros). Mas a recíproca não é verdadeira. Muitos fornecedores digitais tratam o consumidor com total desconfiança. Richard Caves já disse que “a confiança funciona como um cimento das relações sociais no mercado. Ela é especialmente importante em momentos de incerteza e transformação. A confiança, ao contrário do que se pode pensar, aumenta a eficiência das relações econômicas”. Logo, sem confiança recíproca, fica difícil promover honestidade no meio digital.

*Ronaldo Lemos, 33, é diretor do Centro de Tecnologia da FGV-RJ e fundador do site www.overmundo.com.br. Seu e-mail é rlemos@trip.com.br

 

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