Uma verdade inconveniente

por Francine Lima
Trip #252

O alto consumo de açúcar faz a população mundial engordar e morrer de diabetes. Mas uma cruzada aos excessos já começou e aponta soluções. Entenda por que esta batalha não é só do seu vizinho

Quantas vezes você já ouviu falar que o excesso de açúcar faz mal, engorda, dá celulite, dá cárie, encrava unha, causa terremoto e o diabo? Por causa disso, talvez você tenha corrido pra aula de crossfit com aquela torta de chocolate da sobremesa amargando na memória. Ou talvez você apenas queira comer sua torta em paz, ninguém tem nada com isso, ora. Se bobear, você nem se preocupa com o açúcar, porque nem come tanto doce assim. Mas aquela sua vizinha gorda deveria se preocupar. Isso é assunto privado, quem é você pra se intrometer na vida alheia, não é mesmo?

Olhando de fora, pode parecer que sua vizinha obesa, com seu marido obeso e seus filhos obesos, escolheu adicionar mais açúcar do que deveria na dieta da família. E, como a família está exercendo sua liberdade de escolha, ela deve arcar sozinha com as consequências de seus hábitos de consumo. Acontece que existem milhões de vizinhas na mesma situação. O mundo hoje é habitado por 600 milhões de adultos obesos e 42 milhões de crianças com sobrepeso ou obesidade, segundo a OMS (Organização Mundial da Saúde). No Brasil, quase 18% da população adulta está obesa, segundo a pesquisa Vigitel, do Ministério da Saúde (2014). Se considerarmos a população que está com sobrepeso, o número cresce para mais da metade dos brasileiros (52,5%).

Um relatório preparado por pesquisadores americanos, entre eles o pediatra Robert Lustig – conhecido por sua incansável campanha contra o açúcar –, afirma que os efeitos prejudiciais do açúcar vão muito além das calorias vazias. Além da obesidade, o consumo excessivo está associado a doenças crônicas, como diabetes e síndrome metabólica, esta última muito frequente inclusive em pessoas de aparência magra.

Quando milhões de famílias adotam hábitos de consumo não saudáveis ao mesmo tempo, com impacto no desenvolvimento de crianças e na produtividade dos adultos, gerando altos custos para os cofres públicos, a liberdade de escolha no supermercado deixa de ser um assunto familiar e passa a ser um debate em que o país inteiro precisa se envolver.

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Supermercados ofertam uma infinidade de produtos que contêm açúcares livres em excesso. Leite achocolatado. Iogurte com fibras e sabor de fruta. Suco ou néctar de caixinha. Papinha para bebê. Barrinha de “cereal”. Pão branco. Molho de tomate. Bebida isotônica. Chá pronto para beber. Muitos são produtos tão doces quanto sobremesas, mas promovidos como se fossem opções saudáveis. E tantos outros, veja só, em que você nem espera que tenham tanto açúcar – mas ele está lá. Esses produtos se tornaram tão presentes na nossa alimentação nas últimas décadas que quem aponta o engodo corre risco imediato de ser tachado de natureba ecochato.

Segundo a OMS, não mais que 10% das calorias que ingerimos deveriam vir de açúcares livres. Em uma dieta com 2 mil calorias diárias, esse valor equivale a 50 gramas de açúcar (200 calorias), o mesmo que 12 colheres de café, um pacote de bolacha recheada ou duas latas de refrigerante. No mesmo comunicado, a OMS destaca ainda: “Uma redução para baixo dos 5%, ou 25 gramas, traria ainda mais benefícios à saúde”. Estamos mal. Já na década passada os brasileiros batiam a média de 16,7%, segundo estudos do grupo da USP. Um estudo mais recente demonstrou que os brasileiros que mais ingerem açúcar são aqueles que consomem alimentos ultraprocessados (como biscoitos doces, refrigerantes e sucos de frutas industrializados, pães de fôrma e bebidas lácteas adoçadas). Ou seja, quem inclui alimentos processados nas refeições diárias está exagerando no açúcar mais do que aqueles que só dão boas vindas a ele na hora da sobremesa.

Se tivesse o hábito de ler as listas de ingredientes nos rótulos, o consumidor encontraria com frequência nomes como açúcar líquido, açúcar invertido, dextrose, frutose, xarope de glicose, entre tantos. Ainda que identificasse os  sinônimos do açúcar, não poderia saber em que quantidade esses ingredientes são utilizados nos produtos, pois nenhum fabricante é obrigado por lei ou norma a inclusão desta informação: na tabela nutricional deve-se declarar o total de carboidratos, mas fica a critério do fabricante incluir a informação detalhada.

Também não há nenhuma regra sobre a quantidade de açúcar que pode ser incluída em uma formulação. Ou como isso deve ser comunicado. Quando consumimos comidas e bebidas industrializadas estamos à mercê do critério que a indústria quiser adotar para adoçar seus produtos. E o que ela tem feito é transformar seu cereal matinal e o seu iogurte em sobremesa; e embalar isso em frases de efeito e cara de natural para você acreditar que é saudável para você e para as crianças.

Isso tudo parece complicado demais, não? O economista Trent Smith, da Universidade de Ontago, na Nova Zelândia, estuda os obstáculos que o consumidor enfrenta na tarefa de se informar. Smith descreve o quadro mais ou menos assim: de um lado, há uma indústria endinheirada e poderosíssima que mobiliza milhões de dólares todos os anos para estampar suas marcas em todos os lugares, financiar cientistas, influenciar jornalistas, aliciar legisladores, barrar leis e manter os rótulos pouco esclarecedores. Do outro lado estão os consumidores, que sabem pouco ou nada sobre nutrição, não conhecem os métodos de processamento industrial de alimentos e não têm tempo para investigar informações ocultas ou mesmo para interpretar corretamente o que dizem os rótulos. A solução está, segundo ele, em facilitar a escolha do consumidor por meio de informação previamente interpretada.

Alguns países, incluindo o Brasil, têm experimentado medidas para tornar os rótulos menos obscuros. Desde 2014 a Anvisa (agência regulatória que dita as regras de rotulagem no Brasil) tem colocado universidades, ONGs, ministérios e representantes da indústria para debater propostas de melhoria. Entre elas, a inclusão de algum tipo de gráfico codificado por cores que sinalize claramente – e na frente da embalagem – qual o teor de açúcar, gordura e sódio em um produto. 

Rótulos de alimentos embalados no Reino Unido, na Austrália e no Equador usam as cores do semáforo para avisar sobre o teor desses nutrientes: alto (vermelho), médio (amarelo) ou baixo (verde). Inspirada nos canadenses, a Anvisa também cogita mandar agrupar todos os sinônimos de açúcar num único local da lista de ingredientes, além de exibir a lista de modo mais visível na embalagem. Com isso, o açúcar apareceria mais no início da lista e chamaria mais a atenção.

Outra estratégia que tem sido discutida em Brasília é convencer a indústria a simplesmente colocar menos açúcar em seus produtos. Em 2007 o Ministério da Saúde iniciou uma série de acordos com a Associação Brasileira das Indústrias da Alimentação (Abia) para reduzir os teores de gordura trans, sódio e açúcar nos alimentos industrializados. Começaram com a gordura, depois reduziram o sal, mas o açúcar continua na fila. Perguntamos para a Abia por que o acordo para a redução do açúcar ainda não avançou. A resposta não veio. “A indústria da alimentação está comprometida em seguir as normas vigentes para a fabricação e rotulagem de alimentos”, respondeu a assessoria de imprensa.

O relatório preparado pelo time de Robert Lustig, baseado em políticas públicas de combate ao alcoolismo, já mais consolidadas, analisa as estratégias que têm maior chance de funcionar para reduzir o consumo de açúcar. Entre as medidas que têm menor eficácia estão campanhas focadas nas mudanças de escolhas individuais, acordos voluntários assinados pela indústria e programas de educação nas escolas.

Rotulagem, restrição da publicidade e contrapropaganda teriam resultados moderados. As evidências de maior eficácia apontam para medidas regulatorias de controle do mercado de alimentos que afetem preços, ações de marketing e distribuição de produtos. Isso significa que “se as sociedades querem mitigar os danos causados por commodities com impactos adversos na saúde, a melhor saída é reduzir a disponibilidade e a facilidade de acesso a esses produtos”. 

Seria o caso, por exemplo, de proibir ultraprocessados adoçados na merenda escolar, como já faz uma lei do Distrito Federal, ou aumentar impostos sobre produtos com alto teor de açúcar para que se tornem mais caros do que os alimentos saudáveis. São medidas controversas e potencialmente impopulares. Por isso o país inteiro precisa entrar na conversa que antes parecia particular.

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