Rock, fake e cinema

por Henrique Goldman
Trip #202

Anvil! retrata as desaventuras de uma falida banda de heavy metal, por Henrique Goldman

A exemplo de This is Spinal Tap, o surpreendente longa-metragem Anvil! A história de Anvil também retrata as desaventuras de uma falida banda de heavy metal

O maravilhoso longa-metragem This is Spinal Tap foi lançado nos Estados Unidos em 1984. Fez muito sucesso, virou cult mas nunca foi exibido no Brasil e até hoje é praticamente desconhecido fora do mundo anglofônico. O filme, que se passa no início dos anos 80, é um documentário sobre a banda de heavy metal Spinal Tap (algo como “injeção lombar”). Depois de passar os anos 60 gravando baladinhas psicodélicas, o Spinal Tap engatou uma fase de rock pesado de sucesso. Mas logo entrou em decadência e ficou esquecido no lixo da história do rock. O documentário retrata a desastrosa tentativa de voltar ao sucesso durante uma turnê americana.

Mas tem um detalhe importante: a banda nunca existiu. E o filme, dirigido por Rob Reiner, é um falso documentário, uma paródia tão milagrosa e perfeita dos documentários de rock, que muita gente que assiste realmente acredita que a banda exista. As músicas, as atuações impecáveis, a fotografia e a trama singela constroem um realismo tão sólido, tão cheio de poros e odores, que até as situações mais absurdas parecem mais com a vida do que com filme. A propósito: com o sucesso do filme a banda passou realmente a existir. Gravaram discos, fizeram videoclipes e turnês.

São muitos os momentos antológicos no This is Spinal Tap. Um deles é quando o guitarrista Nigel Tuffnell (interpretado pelo magnífico Christopher Guest) está exibindo sua preciosa coleção de guitarras para o diretor do documentário (interpretado pelo próprio Rob Reiner). Com orgulho, ele aponta para seu amplificador predileto, um Marshall envenenado cujo volume, ao contrário dos reles amplis normais que vão até 10, chega ao 11. A cena fez tanto sucesso que o fabricante de amplificadores Marshall lançou como homenagem ao filme uma edição especial de amplificadores, com o volume máximo no 11.

Os dois personagens principais são Nigel – esse guitarrista – e David St. Hubbins, o vocalista. Eles são amigos inseparáveis, parceiros desde a infância. Mas as tensões da desastrosa turnê e a chegada da infeliz da namorada de David (uma espécie de Yoko Ono) acabam criando uma tensão insuportável, e o grupo se desfaz. Já assisti ao filme dezenas de vezes e continuo a vê-lo. Conheço cenas, as letras das músicas e os diálogos de cor. Mas ainda assim, a cada nova sessão, rio e me comovo como se assistisse a ele pela primeira vez.

Entusiasmados sempre
A exemplo de This is Spinal Tap, o surpreendente longa-metragem Anvil! A história de Anvil também retrata as desaventuras de uma falida banda de metal, o grupo canadense Anvil, que nos anos 80 tinha uma carreira muito promissora e influenciou gente da pesada como Scorpions, Whitesnake e Bon Jovi.

Mas, ao contrário de This is Spinal Tap, Anvil é um documentário de verdade. A banda nunca conseguiu decolar, e hoje o guitarrista Steve “Lips” Kudlow trabalha entregando merenda escolar enquanto seu inseparável companheiro, o baterista Robb Reiner, é peão de obra. Eles estão velhos, deprimidos e acabados, mas continuam muito unidos em busca de um sonho comum: o sucesso. Quando uma fã italiana, a enlouquecida Tiziana, os convida para uma turnê europeia, eles embarcam entusiasmados como dois adolescentes.

Mas a turnê é um desastre. Aqui, no mundo real, os dois amigos também brigam, se separam e sofrem, cada um sentindo-se incompreendido e subestimado pelo outro. É um filme engraçado mas também triste, sobre a desilusão e a solidão. No fim os dois amigos se reúnem e, juntos mais uma vez, continuam a tocar e a sonhar. O pôster define o filme como um hino de amor ao espírito humano.

A realidade retratada pelo documentário Anvil é pelo menos tão absurda quanto a ficção do Spinal Tap. Um eco comum e distorcido reverbera entre as duas obras-primas que se espelham. Por trás do rock e do refinadíssimo humor, são filmes profundos, sobre a amizade, sobre forças quixotescas que separadas perecem mas, unidas, vencem para afirmar e celebrar a vida como um valor enorme, absoluto, sagrado, absurdo.

*HENRIQUE GOLDMAN, 48, cineasta paulistano radicado em Londres, é diretor do filme Jean Charles. Seu e-mail é hgoldman@trip.com.br

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