Ou a enésima primeira vez da mesma experiência
Caro Paulo,
Você sabe que, como um bom virginiano, sou extremamente crítico e detalhista.
Isso sempre me deixou muito alerta e atento a tudo que eu vivo e ao que está à minha volta. Essa atitude não era vista como virtude, mas como um defeito de alguém que nunca relaxa e está sempre vendo e vivendo tudo como se fosse a primeira vez. Para dizer o mínimo, um chato, um pentelho.
Carreguei esse personagem como um fardo por um bom tempo até que aprendi a virtude de ver e viver tudo como se fosse a primeira vez.
Foi Neil Ferreira (RIP), meu primeiro e excelente diretor de criação numa agência de publicidade, quem me falou, na década de 70, que a base da atitude criativa era a habilidade de ver tudo como se fosse pela primeira vez. Ele sugeria usar o olhar da criança, descondicionado e livre, para ver as coisas como elas de fato são, e não vestidas com os conceitos e preconceitos da cultura vigente.
Ao usar a imagem das “coisas vestidas de preconceito”, me lembrei da fabulosa história “A roupa nova do rei”, de Hans Christian Andersen. Já falamos dela aqui, mas, nesses tempos em que o Ministério da Educação quer ditar a moda infantil, é bom discutir sobre o poder das aparências, para o bem e para o mal. Google it.
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Na década de 80, pela segunda vez, ouvi falar da beleza e da importância da primeira vez. Foi quando entrei em contato com o trabalho do filósofo grego Heráclito (século 5 a.C.) e com o Taoísmo, por meio do estudo de I Ching: O livro das mutações com o monge budista Gustavo A. Correia Pinto.
Nesse momento, comecei uma jornada muito feliz com o meu jeito de ser encontrando o meu jeito de pensar. E digo muito feliz porque foi o jeito de ser que encontrou o jeito de pensar; não foi o jeito de pensar que moldou meu jeito de ser. Foi uma mistura de alegria, excitação e entusiasmo que sinto até hoje: eu estava encontrando uma visão, uma filosofia e uma linguagem que me ajudavam a entender a vida e a expressar o meu ser, a minha presença neste mundo. Uma felicidade!
Só sei que sou assim
Você pode imaginar o que isso significou de libertação e ampliação de olhar para alguém que teve desde criança seu universo reduzido por uma educação católica cristã, permeada de dogmas e contaminada pela culpa de uma religião controladora e manipuladora.
Uma boa síntese do meu aprendizado com Heráclito é um pensamento muito famoso de sua autoria: “Você não entra no mesmo rio duas vezes, porque, na segunda vez, nem o rio nem você são mais os mesmos”. Outra ideia genial atribuída a ele é: “panta rei que significa tudo flui”.
Se isso é verdade – e eu acho que é –, podemos concluir que existem dois tipos de primeira vez: a primeira primeira vez e a enésima primeira vez da mesma experiência.
As duas são importantes, mas eu recomendo fortemente que se adote como um estilo de vida a “enésima primeira vez da mesma experiência”. Porque, ao curtir apenas a primeira primeira vez, a vida se perde no tédio da repetição e se consome no estresse de eternamente buscar novas experiências de primeira vez.
Talvez por isso também, para quem só busca primeiras primeiras vezes, o maior castigo de uma prisão seja a repetição. E não importa a prisão: pode ser uma cela, um casamento, um corpo, um emprego, uma casa, uma cidade, sei lá… Não é o meu caso.
Por exemplo, ao sentar para fazer esta coluna, eu não tinha ideia do que ia escrever, e o desenrolar da conversa foi uma surpresa enorme para mim. Como eu não sabia que sabia que existiam dois tipos de primeira vez, escrever a enésima coluna está tendo sabor de primeira vez.
Ah! Com esses aprendizados, não deixei de ser chato e pentelho, mas hoje vejo mais virtude do que defeito nesse jeito de ser. E quem trabalha ou trabalhou comigo sabe que é assim que ganho a vida, nos dois sentidos.
E talvez seja por isso que você me mantém aqui até hoje, certo?
Abraço do amigo, Ricardo