Projeto Afrosurf promove esporte e senso de união em comunidade quilombola de Ubatuba
A região da Caçandoca, reduto de quilombolas em Ubatuba, guarda um passado sangrento. Foi lá que muitos escravos foram submetidos a todo tipo de agressão e crueldade que o sistema escravista foi capaz de proporcionar.
Ramon Soares, de 17 anos, e Clarice Lourenço, ou Chally, como é mais conhecida, fazem parte da pequena comunidade de cerca de trinta famílias que formam a Caçandoca. Ele sonha em ser jornalista, ela cursa a faculdade de Educação Física. Os pais dele vieram de Camburi, outro quilombo em Ubatuba. Os dela são donos de um quiosque à beira-mar onde a filha trabalha aos finais de semana. “Eu sobrevivo fazendo bicos, minha mãe brinca e pergunta como eu consigo ser tão tranquilo e ver o lado positivo das coisas”, diz ele.
Juntos, são responsáveis pelo AfroSurf, projeto que oferece aulas de surf para as crianças da região e tem o intuito de fortalecer os elos entre a comunidade. “A ideia nasceu em uma temporada de verão enquanto eu pegava onda. Comecei a notar as crianças pelas ruas, a maioria dos pais trabalhando nos quiosques, aquilo me preocupou”. Durante a temporada há bastante movimento no lugar, que não tem sinalização ou lombadas para inibir motoristas embriagados em alta velocidade. “ Decidi chamar três crianças para surfarem comigo. Dois dias depois os vi ficando de pé na prancha. Aquilo me deu um estalo”, conta.
Os três meninos viraram dezesseis e encontraram no surf uma razão para sorrir, ou apenas uma oportunidade para serem crianças. Talvez quem sabe tornarem-se atletas. O projeto está engatinhando e precisa de força. O acesso e a dificuldade de comunicação com as pessoas do local complicam a situação. Os rancores vividos por gerações antepassadas parecem ter deixado uma cicatriz profunda no que restou da comunidade.
Como se não bastasse toda a dor vivida durante a escravidão, Caçandoca enfrentou em um passado recente a especulação imobiliária. “Os mais velhos contam que foi muito difícil, o pessoal da imobiliária chegava aqui armado e pessoas morreram tomando tiro. As máquinas derrubavam as casas, a própria comunidade também atirava pra reagir. Era um cenário de guerra”, conta Ramon. A luta durou quase quarenta anos e, de um vasto território, sobrou aos quilombolas uma área de 890 hectares.
Hoje quem visita o lugar vê de um lado um condomínio de luxo na praia do Pulso e do outro um castelo pertencente a vertente de extrema direita da Igreja Católica, os Arautos do Evangelho, ou se preferir “Os Inimigos do Papa”, como mostrou recente reportagem da Revista IstoÉ.
O lugar, de difícil acesso, sobrevive por meio do turismo e da pesca artesanal. A desigualdade social está escancarada a todo o tempo. Marinas com iates luxuosos dividem espaço com embarcações humildes. Para os adultos há pouco trabalho e para as crianças não há lazer nenhum. Depois da escola é com esse nada e esse imenso vazio que elas têm que lidar.
Segundo definição etimológica, o termo comunidade origina-se do latim “communitas” que significa companheirismo, comum, geral, público. A Caçandoca hoje nada tem de comum. “Há um ciclo de conflito, porque ninguém se dá bem com ninguém aqui, as brigas são constantes”, desabafa Ramon.
“O ser humano se apega ao eu e não ao nós. Eles batalharam tanto tempo por esse lugar e não conseguem usufruir. A nova geração sabe sobre o passado de luta, mas agora quer desfrutar das conquistas e desse espaço. Continuar esse ciclo vicioso de conflito banaliza todo esse esforço”, diz.
Banal não é, porém, a garra de Ramon e Clarice. Eles estão determinados a trazer ao lugar, por meio do surfe, a reintegração com o ambiente e com o real significado de uma comunidade.
Créditos
Imagem principal: Janaína Pedroso