’O que eu havia feito de tão importante que merecia tal premiação?’
Semana passada recebi e-mail de um sujeito chamado Maurício que trabalha na empresa Maker Brands. Ele queria me comunicar que eu havia sido escolhido para receber o prêmio Trip Transformadores. Como não sou nada especial e não tenho nada de fantástico, fiquei estupefato, imaginando como e porque se chegou a essa escolha. Guga Kuerten, Isabel Fillardis, Fernando Meirelles, Monja Cohen, Tia Dag, Cristovão Tezza e outras pessoas tão ou quanto importantes quanto essas citadas, já haviam recebido a homenagem. O que eu havia feito de tão importante que merecia tal premiação?
Claro, sei que tenho feito algumas coisas que para mim são da mais alta importância na minha área de atuação. Mas tenho como obrigação pessoal e não como algo excepcional. Sai da prisão há 12 anos, depois de mais de 31 anos preso, e até agora publiquei 6 livros e a maioria pela Companhia das Letras. Tenho coluna na revista Trip há 14 anos e mantenho um blog no site da editora há 11. Tenho feito oficinas de leitura e escrita em várias prisões e escolas, Fundação Casa, universidades e comunidades.
Na prisão, por cerca de 10 anos fui professor e alfabetizei trocentos ex-companheiros. Estudei, observei e convivi com homens aprisionados e tinha certeza que por trás das duras muralhas não havia elefantes, girafas, ursos e sim seres humanos. Sempre soube que o homem aprisionado não é mau ou perverso como a mídia o apresenta, para fazer sensacionalismo e vender suas publicações. Mais que sabia, tinha conhecimento de que o problema do homem preso era cultural. Estamos, enquanto seres humanos, condenados a produzir cultura onde e em que situação estivermos. A sociedade os abandona enterrados em pé atrás de grades de ferro e não lhes oferece nenhum tipo de cultura diferente daquela que eles aprendem nas prisões. Na prisão, impera a cultura do crime. É a única a ele acessível, e que subverte os resquícios da cultura social que ainda possa restar em seu âmago.
Saí da prisão pensando que faria a diferença. Estudei muito para me capacitar, particularmente sociologia e antropologia cultural. Acreditei que apresentaria a argumentação acima citada e que seria ouvido, entendido. Mas nem eu e muito menos a sociedade estávamos preparados para tamanho esforço. Lutei o quanto pude esses 12 anos, mas o que consegui foi muito pouco.
Até que, em associação com o psicólogo e coaching Maurício Cardenete e financiado pelo Instituto Ação pela Paz (IAP), conseguimos criar e formatar um projeto que contemplava todos os objetivos socio/culturais que queríamos levar para dentro da prisão. Crítica e auto-crítica, valores, consumismo, a importância do outro, preconceitos, limites, trabalho, relacionamentos, posturas, preparação para futuro, saída da prisão. Cerca de 37 assuntos que julgamos necessário debater com o homem aprisionado.
Iniciamos o projeto piloto com cerca de 25 presos do Centro de Ressocialização de Limeira. São 20 módulos com vídeos, música, dinâmicas e muito diálogo. Demoramos cerca de 4 meses para produzir o projeto e outros 6 meses para aplicá-lo.
Sexta feira, 03/06/2016, após desenvolver todo projeto com nossos alunos, apresentar os indicadores e avaliativos ao Instituto que nos apoiou, aconteceu a solenidade da entrega dos certificados de conclusão do projeto/curso. Foi emocionante! Abraçamos a cada um dos ex-companheiros com todo nosso coração. Eles agora eram nossos amigos: nos conhecíamos mutuamente com intimidade. Juntos, havíamos vivido emoções e desenvolvido conversas que até para nós foram surpreendentes e inauditas. O projeto fora um sucesso, eles estavam empoderados, voando baixo e estavam prontos para encararem a convivência social. Deu tanto certo que agora vamos ensinar 4 estagiárias de psicologia de uma faculdade próxima ao presídio, a passarem o projeto/curso para outros homens presos. E iremos para outras prisões com a mesma missão. Foi uma glória para nós, uma realização.
A pessoa da Maker Brands que primeiro me contatou para comunicar que eu seria homenageado com o prêmio Trip Transformadores, afirmou que "o foco da premiação está na jornada pessoal, persistência e entrega. Nosso prêmio busca inspirar outras pessoas a acreditarem que é possível modificar a realidade e mostrar que quem venceu não é herói, mas alguém com fibra e propósito." Embora eu sinta que minha atuação é uma obrigação que tenho para com seus ex-companheiros, até que não estou tão fora dos propósitos da premiação, não é mesmo?