Perdão, Mel Gibson

por Carlos Nader
Trip #121

Carta aberta a um cineasta católico e fervoroso

Caro Mel Gibson,

Talvez eu esteja escrevendo esta carta cedo e, ao mesmo tempo, tarde demais. Tarde porque, quando ela for publicada, aposto que ninguém mais vai querer ouvir falar do debate sobre sua Paixão de Cristo. E cedo porque escrevo no começo de março. O filme nem estreou no Brasil.

Então, ainda não assisti à Paixão. Já ao debate, tenho assistido com muita atenção. Talvez ele seja mais relevante que o filme. A resenha já é instigante. Primeiro, acusam você de ter feito um filme violento e anti-semita, que culpa os judeus pela morte de Jesus. Aí você se defende dizendo que o filme é violento porque é literal, e que os culpados pela morte de Jesus não são os judeus, mas todos nós. Fico duplamente preocupado. Com a acusação e com a defesa.

A gente vive um momento histórico em que os racistas em geral - e os anti-semitas em particular - estão voltando a colocar as mangas sujas de fora. No mínimo não é hora de dar mais força a essa gente, de ressuscitar a calúnia que fez um povo inteiro sofrer por tantos séculos. Nunca é hora. Isso, no caso de o filme ser anti-semita, claro.

E, sobretudo, caso você não faça parte do que eu chamei bondosamente de "essa gente". Talvez seja difícil para você aceitar o fato de que foram ocidentais as forças decisivas na morte de Cristo. Pode ser duro admitir que, independentemente da elite local a que geralmente se associa a crucificação, a responsabilidade histórica é das mesmas forças que colonizaram terras e cabeças aborígines, ameríndias, africanas, árabes, indianas, incas ou maoris. Forças das quais você atualmente é um oficial estrelado, um brigadeiro do batalhão virtual, um conquistador de mentes.

Mea-mínima-culpa

É claro que eu também não acredito que alguém hoje deva ser culpado por um Jesus crucificado como "Rei dos Judeus" pelas mãos lavadas de uma forma remota de imperialismo branco. Além de não partilhar do culto masoquista que vê no Ocidente a raiz de todos os males do mundo, eu não acredito que a abordagem relevante da história de Cristo deva ser aquela da distribuição de culpas. Acredito no exato oposto.

É essa a principal razão da minha carta, Mel. O que é que eu posso achar da sua defesa, essa idéia de que a culpa não é só dos judeus, mas de "todos nós pecadores?" Soaria apenas como piada, surreal, absolutamente nonsense, não fosse ela também representante de uma ideologia velha e viciosa que já causou tanta dor ao mundo. "Todos nós? quem, cara pálida? Me poupe dessa reiteração secular do calvário, -daquele que sofreu por nós", para reforçar a idéia de que somos sempre devedores.

Porque pecador é devedor, né, Mel? Culpado. Desculpe, eu não creio que a fé se meça pela quantidade de culpa e sangue que se expia na tela. Ou, menos ainda, na Terra. Ao contrário, o cristianismo que me encanta é muito menos amargo. Nele, a culpa é da própria culpa.

Caro Mel (ou Caro Fel? Ou Caro Karo?), eu escrevo só para deixar claro um outro ponto de vista. Não para culpá-lo de culpar-nos. Acho que você deve ter suas razões. E acho lindo que tenha arriscado uma carreira estabelecida para tentar contar uma história essencial. Uma coisa a gente tem em comum. Cristo também é uma figura central na minha vida. Pena que sejam Cristos diferentes. O que mais me toca na mensagem de Jesus é a idéia libertadora do perdão. Não só aos outros, mas também a nós mesmos. Ou seja, justamente a negação da culpa. A compreensão. Então termino aqui com um convite.

Por que você não vem ao Brasil? Aqui você se depararia com uma outra visão do Cristo, lá no topo do morro do Corcovado. Linda, serena, transformadora. Vem dar uma olhada. Primeiro, a visão se apropria da imagem do homem agonizando na cruz e a transmuta num abraço aberto, desbragado de toda culpa. Depois, se você observar de perto, ela usa os buracos dos pregos cravados nas mãos de Jesus para transformá-los em olhos esculpidos na pedra. E o que vêem esses olhos, Mel, não é apenas a dor do mundo, mas a vista redentora da baía de Guanabara. Isso é que é fé.

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