A Verdade
Eu devia ter uns 8 ou 9 anos de idade. A minha garganta vivia inflamada e tudo indicava que operaria as amídalas. Minha mãe acordava comigo na madrugada e, só com o café na barriga, pegávamos o ônibus para ir ao Hospital das Clínicas. Só havia dinheiro para a condução dela. Eu era pequeno e passava por baixo da catraca.
Geralmente eu vomitava no ônibus. Era começar a rodar para que minha cabeça rodasse junto e o engulho no estômago viesse automático. Minha mãe me ensinava a colocar a cabeça para fora. Uma vez pequei em cheio um jovem que vinha de bicicleta na contra mão. Foi rápido; não deu tempo para olhar. Coloquei a cabeça para fora e veio tudo um jorro só. O vômito bateu no rosto dele e o derrubou na calçada. Ficou lá, todo melecado e se limpando, sem acreditar.
O dia ainda não havia clareado e a fila para marcar atendimento já era enorme. As pessoas que reclamam não sabem o que é aguentar fila realmente. Ficávamos 5 ou 6 horas ali só para marcar consulta. Depois eram horas para ser atendido. E de pé. O povo era muito mal tratado aquele tempo.
Naquele dia estávamos na fila da consulta. Mais da metade da jornada havia sido cumprida. Eu e minha mãe estávamos com fome. Os ambulantes vendiam coxinha, esfirra e cachorro-quente. Não havia dinheiro. “Lambe com os olhos e come com a testa”, dizia minha mãe, querendo fazer graça com nossa pobreza. Eu olhava as pessoas que rodeavam os carrinhos com ressentimento. Porque eles podiam e eu não? Não conseguia entender as explicações que me ofereciam.
Então um médico (roupa toda branca e a máscara) sai da sala de atendimento e nos olha na fila. O enfermeiro vem atrás e o doutor reclama:
_ Porque toda essa gente ainda? E nos olhava qual fosse algum objeto, alguma coisa que ele na gostava.
_ Mas Doutor, são as consultas do dia, já estão agendadas, alguém precisa atender, e eu não sou médico! Defendia-se o enfermeiro com a voz esganiçada.
Os dois entraram para a sala de consultas discutindo nervosamente. Logo o enfermeiro voltou. Cortou a fila pela metade. Por sorte estávamos entre os cinco premiados da frente. Os demais teriam que voltar dia seguinte. O Doutor estava com a agenda cheia e estava com pressa. Amanhã outro médico os atenderia.
O pessoal saiu cabisbaixo. Alguns caminhavam com dificuldades, mas seguiam conformados, sem uma reclamação sequer. Aquilo doía em mim, embora não entendesse ainda por que.
Ao sermos atendidos, o médico estava de luvas e máscara, falava de longe, nos evitando. Quando precisou examinar minha garganta, o fez com a ponta dos dedos e muito rapidamente. Minha mãe fuzilava com os olhos, estava quase chorando de raiva. Segurou, engoliu sei lá o que. Sua boca se movimentava, mas não saia som. Recebeu o papel com os rabiscos que me encaminhava para a cirurgia. Abaixou os olhos, fez como quem cuidava de mim, não agradeceu e saiu me empurrando para fora dali. Eu não havia entendido nada.
Na rua, comigo em sua mão, ela encostou a cabeça no muro do hospital e chorou. Minha mãe chorava feio, quase ganindo como um cão. Depois enxugou os olhos, assuou o nariz, se abaixou à minha altura e disse gravemente, olhando o fundo de meus olhos:
_ Meu filho, aquele homem fez aquilo conosco porque estudou e por isso se acha melhor que nós. Pois você vai estudar, vai aprender e saber mais que aquele homem e mostrar a todos esses filhos da puta (raras vezes ouvi minha mãe dizer “palavrão”) que somos iguais e até melhores que eles! E saiu me levando pela mão, de queixo erguido, consciente do que havia dito a mim.
Até hoje tenho problemas com médicos. Preciso estar morrendo para procurá-los. Na prisão fiquei mais traumatizado ainda com os poucos médicos que me atenderam. É claro que sei que há bons médicos. Conheci alguns. Mas, depois de uma fase muito difícil, um dia me lembrei deste acontecimento. Recordei o fogo nos olhos de minha mãe. Voltei-me aos livros e nunca mais parei de estudar. Um dia chego onde ela queria.
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Luiz Mendes
19/06/2010.