A marca do Pantera Negra

por alexandre matias

Conversamos com Emicida, Tássia Reis e outras personalidades da cultura negra sobre como Pantera Negra injeta autoestima ao público negro

Os mais de 700 milhões de dólares arrecadados pelo filme Pantera Negra nos dois últimos finais de semana nos cinemas em todo o mundo não são apenas mais um capítulo na multimilionária e bem-sucedida escalada do estúdio Marvel ao topo do entretenimento global. O sucesso financeiro da produção também sublinha a importância de um filme de tal proporção ser inteiramente dominado por atores e personagens negros, fazendo referências fortes e contundentes à forma como o continente africano foi subjugado pelos povos brancos, ao mesmo tempo em que injeta uma forte carga de autoestima em um público acostumado a ver heróis e heroínas sempre retratados em biotipos caucasianos. 

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Foi o que aconteceu na semana passada, quando o grupo feminista Negras Empoderadas fechou uma sala de cinema em São Paulo para exibir o filme para um público formado apenas por negros. A sessão foi organizada pela advogada Mayara Silva de Souza, de 25 anos, integrante do grupo desde sua formação em 2015. "Há cenas no filme que mostram situações e sensações pelas quais passamos e numa sessão formada apenas pela gente, conseguimos sentir e exprimir o que sentíamos naturalmente, porque sabíamos que pessoa ao lado sentiria a mesma coisa”, explica a organizadora da sessão. “Quando as guerreiras do filme aparecem lutando, várias pessoas gritaram ao mesmo tempo, sem combinar, pois sentíamos a mesma coisa."

O grupo Negras Empoderadas começou num jantar organizado por mulheres negras ativistas, migrou para o Whatsapp e hoje existe no Facebook, com mais de 11 mil inscritas, todas convidadas a participar. Entre as envolvidas estão nomes como a ex-consulesa da França no Brasil Alexandra Loras, a empresária dos Racionais MCs Eliane Dias, a atriz Adriana Lessa, a cantora Anelis Assumpção, a empresária Rachel Maia, entre outras que Mayara fez questão de chamar para a sessão, a terceira que ela organiza.

“Sabemos da importância de estar na internet, mas sabemos como o encontro presencial também é importante”, continua Mayara, que já havia organizado sessões para outros dois filmes com a mesma temática. A primeira delas aconteceu no ano passado e aconteceu com a exibição do filme Estrelas além do tempo, que conta a história de mulheres negras que tiveram um papel crucial — e esquecido — nos primeiros anos da agência espacial norte-americana, a Nasa. A atriz Camila Pitanga soube da sessão e convidou o grupo para assistir a uma exibição do documentário Pitanga, feito sobre seu pai, um dos únicos homens (ao lado do diretor Beto Brant) presentes naquela sessão.

A novidade sobre a sessão do Pantera Negra foi o fato de ser a primeira vez que o grupo se reúne para assistir a um filme incluindo homens na plateia. O sociólogo e curador de conhecimento Tulio Custodio esteve presente nesta sessão. “Já tinha tido essa experiência nos Estados Unidos; e foi muito importante ver todas as pessoas, a partir de um elo de identidade refletido na representação que estava retratada no filme, terem aquele momento juntas. As reações, as falas, as risadas e gritos: tudo fez parte de uma experiência de comunhão que, no fundo, é o que uma peça cinematográfica pode gerar nas pessoas — mesmo se tratando de um conteúdo de massa”, explica Tulio. “Além disso, e sempre é importante remarcar, é muito bom ver uma sala de cinema em um shopping — com certa circulação de elites — cheia de pessoas negras, ocupando aquele espaço, estando ali. Isso sem dúvida é uma experiência importante para ser demarcada, e espero, que repetida cada vez mais.”

Nerdismo

Quem se empolgou com a chegada do filme foi o rapper Emicida, que nem esperou o lançamento oficial para soltar uma música e um clipe inspirados no personagem. “Eu estava ansioso para ver o filme, aí o Felipe Vassão me deu esse start, ele tem uma visão monstra e disse que se tinha alguém para cantar aquele personagem era eu. E eu concordo pois eu tenho o primeiro Pantera Negra, de sessenta e pouco, quando ele arrumou treta lá com o Quarteto Fantástico, e assisti à evolução do personagem, e vi ele ganhando corpo até ter seu próprio longa, foi foda.”

“Pantera Negra”, a faixa, conta com uma série de referências nerd, tanto de quadrinhos quanto de outras mídias pop, e consolidou uma antiga vontade do rapper. “Eu já estava querendo colocar essas coisas de nerd oficialmente nos meus raps, aí juntou a fome com a vontade de comer e saiu tudo em uma tardezinha, de uma vez só, tipo um freestyle.”

Emicida concorda sobre a importância do filme como gesto de ação afirmativa em grande escala. “É até meio triste, mas estamos em 2018 e essa é a primeira vez que um personagem de pele escura de uma das mais influentes contadoras de histórias de heróis do planeta ganha seu próprio filme. Então Pantera Negra, mesmo tendo demorado, vem em um momento bastante especial que é quando a juventude preta norte-americana, e a branca também, tem bagagem para compreender de forma mais profunda o personagem e seu universo. Isso vem num momento interessante no qual muitos grupos que lutam por mais representatividade em diversos espaços se apropriam do filme como um exemplo concreto de seu discurso. E ele também é isso.”

Sem maniqueísmo

Tulio endossa a fala do rapper. “O filme é excelente. É uma história bem elaborada, com camadas de complexidade que dão um tom realmente interessante e rico para a produção. Personagens ricos, complexos, e cuidadosamente com detalhes subjetivos bem elaborados, de modo que você consegue perceber questões que vão além de uma jornada do herói clássica, ou mesmo maniqueísmos baratos do bem contra o mal. A história é rica por si só, mas dentro do universo Marvel ela ganha um sentido ainda mais interessante.”

“A representação sempre foi um ponto doloroso para o nerd favelado preto, pois quando ele se caracteriza como seu personagem favorito que pode ter a pele clara, ele é ridicularizado”, continua Emicida. “Nisso, o filme acerta lindamente, entregar os ganchos mais incríveis às mulheres, um rei que consulta e ouve as mulheres de seu entorno, a viagem ancestral tecnológica sugerida pelo roteiro me lembra a mitologia yorubá pra caralho. E foge, até onde consegue, do maniqueísmo hollywoodiano, até o vilão tem sua razão e isso é muito africano. A ausência de diabo na mitologia obriga as histórias a serem muito mais complexas, pois boas pessoas podem fazer coisas ruins e pessoas ruins também podem fazer coisas boas.”

O publicitário Ian Black também gostou do filme, mas se sentiu incomodado com a representação feminina em Pantera Negra. “Ainda que este talvez seja o filme da Marvel com o maior número de mulheres fortes — todas com suas personalidades bem distintas e sem cair muito em estereótipos —, a forma como mulheres ainda são postas como coadjuvantes é gritante. Se por um lado temos a irmã mestra da tecnologia e a guerreira que vence o marido, temos a ex-namorada abdicando da sua missão maior para ser apenas a esposa e a cavalaria é formada por uma tribo quase que exclusivamente masculina.” Mas isso não o impediu de gostar do longa: “O filme tem uma importância única e tende a influenciar novas obras em que se evidencie e celebre todo o poder de grupos minoritários.”

A rapper Tassia Reis também endossa: “Pantera Negra vai para um outro lado da história, ainda que ficcional, que faz muito analogia com a realidade, falando sobre como os países africanos foram roubados, extorquidos, sequestrados e como até hoje o mundo age como se fizesse um favor em relação ao continente africano”, descreve, comemorando o sucesso do filme.

O super-herói africano foi criado por Stan Lee e Jack Kirby em plenos anos 60, no auge dos protestos pelos direitos civis e no início do movimento negro norte-americano. Lee percebeu que não havia personagens negros nas histórias de sua editora, a Marvel, e resolveu corrigir este erro criando não apenas um personagem negro, como fazendo-o estrear na capa da revista de maior circulação da editora na época, o Quarteto Fantástico. Da mesma forma, mais de meio século depois, a editora que agora é um estúdio repete o feito produzindo um filme com um elenco quase todo formado por negros, que também ocupam posições importantes atrás das câmeras, principalmente a partir do trabalho de seu diretor, Ryan Coogler.

Fim de um ciclo

Todos concordam que o filme faz parte de uma tendência maior, que torcem para continuar em voga. "Vai ser incrível poder contar nossas histórias sem os nossos estereótipos, esse peso que o racismo nos coloca para que as pessoas tenham um lugar”, continua Tássia. “Mas falando só de filmes de super-herói, já é muito interessante porque são anos de ausência de representatividade, que pra muita gente pode parecer besteira, porém, só quem cresceu tendo que se enxergar em outros personagens sabe como é. Essa infância que pode ir no cinema e ver essa história, já fica com um pingo de esperança para seguir."

“Para quem sempre viu seus pares em papéis secundários e toda a sorte de ausência de protagonismo — “black dude dies first”, já dizia o trope —, Pantera Negra aparece como um contêiner de compensações, com um herói e tudo o que o cerca com o mesmo peso só visto em heróis brancos como Thor, Homem-Aranha, Homem de Ferro e Capitão América”, comemora Ian.

Tulio arremata que o filme não é o início de uma fase e, sim, o fim de outra. “O filme — e a importância que vem adquirindo na sua divulgação —, é consequência de um movimento anterior ter fortalecido tanto por outras produções, como a série Luke Cage, debates públicos e o riquíssimo material criado por ‘independentes’, como Issa Rae, na série Insecure, e Donald Glover, na série Atlanta.

A internet e seus meios de difusão são invariavelmente definidores, desde o surgimento de Issa Rae, quando começou a produzir The Awkward Black Girl no YouTube, aos curtas produzidos pelo Donald Glover, aos diversos canais de YouTube de pessoas negras, e, posteriormente, o investimento que o conteúdo on demand teve nisso: a Netflix com suas produções, como Get Down e filmes como Sonhos imperiais, entre outros; e produções como Empire. Tudo isso contabiliza a demanda e interesse pela representação efetiva — histórias e subjetividades em cena — e positiva de pessoas negras nas produções, para além dos lugares objetificados pela supremacia branca do bandido, objeto sexual ou a própria inexistência”, sentencia Tulio.

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