Como a transformação dos hábitos alimentares está obrigando as empresas a modificar a receita de seus negócios
Há algo de fresco no reino dos alimentos. Quando empresas conhecidas por faturar com misturas carregadas de aditivos químicos passam a alardear produtos integrais, e bilionários investem em orgânicos, e a pressão de consumidores leva multinacionais a mudar fórmulas da noite para o dia, é porque alguma coisa está acontecendo - ainda que, em alguns casos, o ar saudável seja só o certo verniz na embalagem.
"As empresas estão desesperadas para crescer, e os produtos saudáveis ou ecofriendly são áreas de crescimento", diz a nutricionista Marion Nestle, professora da Universidade de Nova York (e nenhuma ligação com a multinacional: o sobrenome e coincidência). Há doze anos, quando lançou o livro Food Politics, Marion soava revolucionária ou paranoica ao denunciar métodos questionáveis de fabricantes para vender uma comida que, levando em conta o teor nutricional, alguém serviria apenas aos inimigos. De lá pra cá, seu discurso contra os alimentos ultraprocessados virou quase lugar-comum. Hoje, mais gente percebe que um macarrão é um macarrão, mas é também um emaranhado de informações sobre economia, saúde, sabor, meio ambiente, direitos dos animais, práticas trabalhistas e comércio justo. E as marcas se movimentam cada vez mais para atrair esse público.
Gigantes do setor têm anunciado a retirada de corantes e aromatizantes artificiais de diversos produtos. O maior desafio é fazer isso sem alterar o sabor, aparência ou preço das guloseimas - é sabido que os aditivos artificiais estão aí em grande parte para garantir produtos baratos, duráveis e palatáveis. Se grandes empresas se propõem a fazer esse exercício, é porque precisam: há um público exigindo mudanças e ele tem que ser atendido. É por isso que recentemente a Hershey's veio a público dizer que vai trabalhar com ingredientes mais simples, como "leite fresco de fazendas locais", e cacau e óleo de palma certificados como sustentáveis; o McDonald's se comprometeu a deixar de usar frangos tratados com antibióticos importantes no combate a infecções humanas (um passo contra o surgimento de bactérias super-resistentes) e a Coca-Cola Brasil divulgou o lançamento de mais sucos de fruta integrais e não adoçados.
FATURAMENTO ORGÂNICO
Um relatório recente da empresa de pesquisas Nielsen aponta como consumidores do mundo todo estão cada vez mais preocupados em ter uma dieta saudável e valorizam comida natural, fresca e pouco processada - embora muitas vezes não resistam a guloseimas açucaradas (e embora os índices de obesidade continuem altos).
Nos carrinhos de compras, essa tendência se traduziu em um aumento de 5% nas vendas de itens considerados saudáveis (tal frutas, verduras, chás, iogurtes, água) de 2012 a 2014. O número chega a 16% se levarmos em conta só a América Latina.
"Enquanto o varejo reclama de queda de consumo, nossas lojas estão mantendo os níveis esperados", diz Carlos Wizard Martins, presidente da rede Mundo Verde. Depois de vender a Multi Holding (das escolas de idiomas Wizard, Yázigi e Skill) por cerca de R$ 2 bilhões à britânica Pearson, o empresário tinha prometido tirar um ano sabático, mas interrompeu o descanso no meio de 2014 para comprar a rede de franquias de produtos naturais e orgânicos. Via ali "um mercado imenso a ser explorado". Desde então, abastecido toda manhã com um suco de três frutas (como laranja, banana e manga) e três sementes (linhaça, quinoa e chia), ele colocou em curso um plano de aumentar o número de lojas de 335 em 2014, para 650 em 2018. Público, segundo ele, não falta, e vai de endinheirados do interior paulista à população das comunidades pobres do Rio de Janeiro: "Abrimos uma loja na Rocinha que vende superbem". O principal desafio, diz, é desenvolver a cadeia de produtores orgânicos. "Há mais consumidores do que fornecedores adequados para atendê-los." A Mundo Verde já é hoje a rede de franquias que mais cresce no setor de alimentação saudável no Brasil.
"Enquanto o varejo reclama da queda de consumo, nossas lojas mantêm os índices esperados", diz Carlos Wizard, presidente da rede Mundo Verde
Falando em fornecedores, o chef brasileiro Lisandro Lauretti, sócio do inglês Jamie Oliver no restaurante Jamie's Italian recém-inaugurado em São Paulo, conta ter passado três anos selecionando e aprovando com a matriz produtores para abastecer a casa. Anunciada como sustentável, a comida inclui carne de animais free-range (criados sem confinamento), peixes de um projeto de multicultura de Ilhabela e linguiças sem conservantes.
RUMO À FAZENDA
Há dez anos, quando começou a cuidar da fazenda da família em Itirapina, em São Paulo, o ex-piloto de Fórmula 1 e empresário Pedro Paulo Diniz (filho de Abilio Diniz, ex-presidente e ex-controlador da rede Pão de Açúcar) percebeu a pequenez da produção orgânica brasileira e viu aí uma oportunidade de negócio.
Mais do que isso, ele diz ter sido atraído pela possibilidade de fazer uma agricultura amigável para o planeta e a saúde das pessoas. Tinha acabado de ver o documentário Uma verdade inconveniente, sobre o aquecimento global, e sua mulher estava grávida do seu primeiro filho. Achou que fazia sentido trabalhar por um mundo melhor para os rebentos. "Foi um grande motivador", diz. "Tanto que fui morar na fazenda com a família e mudei minha vida para cá."
"Se quiserem continuar no negócio, as empresas não têm escolha a não ser acatar a demanda orgânica e natural", diz Vani Hari, do blog Food Babe
Hoje a Fazenda da Toca produz ovos, sucos e laticínios orgânicos de marca própria, processados na propriedade, além de vender para a Taeq, linha do Pão de Açúcar focada em alimentação saudável. Para diminuir custos e se aproximar dos preços dos produtos convencionais (atualmente, seus orgânicos custam de 30% a 100% mais), Pedro Paulo trabalha com um sistema de espécies integradas, inspirado nas florestas, "que se resolvem sozinhas".
"Nosso grande aliado é a enciclopédia de pesquisa da natureza", diz, em um tom de voz que faz a gente esquecer seu passado de piloto.
LER OS RÓTULOS
Hoje à frente da Mãe Terra, o empresário Alexandre Borges também identificou nos produtos orgânicos e naturais uma oportunidade, mas levou alguns anos para embarcar nela. Funcionário da MasterCard na cidade americana de Saint Louis, nos anos 90 ele chegou a trabalhar como caixa do Whole Food Market, rede de supermercados especializada em produtos mais naturais e menos industrializados. Estava interessado em conhecer o modelo de perto para talvez trazê-lo ao Brasil, mas desistiu depois de dois meses porque a jornada dobrada era pesada demais e, na época, achou que aquilo era um negócio de nicho, muito restrito ao então rotulado por aqui como "público natureba". Foi fazer outras coisas, como o Flores Online. Em 2008, ele e o mercado já estavam em outro ponto. Comprou então o controle da marca Mãe Terra, fundada em 1979, disposto a levá-la para um público mais amplo.
Para atingir esse objetivo, Alexandre investiu na diversificação do portfólio com itens de pronto-consumo. Onde antes havia só básicos, como arroz integral, açúcar mascavo e aveia, ele acrescentou biscoitos, salgadinhos, sopas e até macarrão instantâneo, um símbolo do junk food. "Começamos a lançar produtos endereçados a quem quer mais praticidade, mas respeitando os princípios da marca, como ser menos processado e não usar açúcar refinado nem conservantes e aromas artificiais", diz.
Segundo a embalagem, o macarrão instantâneo Caseirito, da Mãe Terra, "orgânico e natural", tem na composição farinha de trigo integral (66%) e farinha de trigo com ferro e ácido fólico. O tempero em saquinho, inseparável dos macarrões instantâneos, leva, no "sabor italiano", tomate em pó, açúcar demerara orgânico, sal moído, extrato de levedura, aroma natural, cebola em pó, pimentão em flocos, gordura de palma, orégano, manjericão e antiumectante dióxido de silício.
Segundo o escritor americano Michael Pollan, cozinhar é uma das maneiras mais eficazes de regular a alimentação saudável. Escolher o alimento pelo rótulo é outra
Para efeito de comparação outro macarrão instantâneo, convencional, contém, na massa: farinha de trigo enriquecida com ferro e ácido fólico, gordura vegetal, sal, vitaminas B3 (niacina), B6 (piridozina), B2 (riboflavina) e B1 (tiamina), reguladores de acidez carbonato de potássio e carbonato de sódio, estabilizantes tripolifosfato de sódio, pirofosfato tetrassódico e fosfato de sódio monobásico e corante sintético idêntico ao natural betacaroteno. No tempero, os ingredientes são: sal, farinha de arroz, condimento preparado sabor legumes, tomate em pó, cebola em pó, beterraba em pó,alho em pó, gordura vegetal, realçadores de sabor glutamato monossódico, inosinato dissódico e guanilato dissódico, antiumectante dióxido de sílico, corantes naturais páprica, urucum e cúrcuma, corante caramelo III, acidulante ácido cítrico e aromatizantes.
CONSUMIDOR ATIVO
Segundo o escritor americano Michael Pollan, cozinhar é uma das maneiras mais eficazes de regular a alimentação saudável. Escolher o alimento pelo rótulo é outra - uma lista extensa de ingredientes, principalmente se tiverem nomes pouco familiares, é mau sinal, escreve ele no best-seller Regras da Comida. Ler rótulos, no entanto, pode não ser divertido nem fácil.
Carlos Martins, da Mundo Verde, conta como uma câmera oculta instalada na seção de produtos naturais de um supermercado flagrou clientes perscrutando uma embalagem atrás da outra, e então desistindo da compra. Em sua rede de franquias, a solução foi deixar nutricionistas de plantão. Mas é fato: mais e mais gente está disposta a esmiuçar as letras miúdas.
Para ajudar essa turma, há cada vez mais blogueiros analisando na Internet a composição de tudo o que comemos. Uma delas é a jornalista Francine Lima, criadora do canal do YouTube Do Campo à Mesa, que investiga alimentos industrializados. Ela faz barulho: um vídeo sobre pães ditos integrais que tinham farinha branca como principal ingrediente foi visto mais de 90 mil vezes (coincidência ou não, ela diz que uma das marcas analisadas melhorou a composição depois de exposta ao escrutínio dos internautas). Mas a brasileiras está longe, a milhões de visualizações de distância, da amerciana Vani Hari, do blog Food Babe, apontada pela revista Time como uma das 30 personalidades mais influentes da internet. Com um séquito do seguidores (o "Exército Food Babe") e métodos ruidosos, Vani organiza petições que deixam pouco espaço para a indústria se esquivar.
Repercutiu na internet, e fora dela, o vídeo em que Vani mascou um tapete de ioga como parte da campanha (bem-sucedida) para forçar a rede americana Subway a remover do pão um componente usado na fabricação de espumas. Mas mesmo a blogueira acredita que métodos menos radicais podem fazer a diferença. "Quando voltamos com nosso dólar, moldamos ativamente o mercado ao nosso redor, mandando uma mensagem clara do que queremos", diz a Food Babe. "Se quiserem continuar no negócio, as empresas não têm escolha a não ser acatar essa demanda."