O paraíso natural por trás do paraíso fiscal

por Millos Kaiser
Trip #209

Fomos as Ilhas Cayman revelar o que existe no destino de parte do dinheiro sujo do mundo

Quer saber com que se parece um paraíso fiscal? Eis o que encontramos ao desembarcar numa manhã de segundafeira no pequeno aeroporto de Grand Cayman: na fila da imigração, além de nós, casais em lua de mel, estudantes em clima de Spring Break, aposentados e típicas famílias norte-americanas. Dentro de um coreto, uma dupla de tecladistas entoava uma versão caribenha da lambada “Chorando se foi”, enquanto uma jovem repetia roboticamente “Welcome to the Cayman Islands!!”. Na parede do saguão, um retrato da rainha Elizabeth II compunha a cena.

Nada aludia ao fato de que acabávamos de chegar no quinto maior centro financeiro do planeta, onde, estima-se, jazem cerca de US$ 1,7 trilhão. Ninguém sabe ao certo a origem dessa bolada – além da pequena carga tributária, sigilo bancário por lá é lei sagrada. E dá-lhe lavagem de dinheiro: fortunas obtidas de forma ilegal são evadidas de seu país de origem e depositadas na conta de empresas de fachada sediadas nas Ilhas Cayman. O dinheiro sujo muda de nome, e pode voltar limpinho para o seu dono corrupto.

Reza a lenda que as Ilhas Cayman teriam vocação para a coisa desde o século 18, quando uma frota de dez navios da coroa britânica naufragou em recifes próximos ao continente. Os caymanenses teriam sido tão eficientes no resgate da tripulação que o rei George III teria agraciado a então colônia com uma “vida duty-free”. Verdade ou não, até hoje nenhum cidadão da ilha ou investidor estrangeiro precisa pagar impostos. A arrecadação do Estado vem toda de tributações em cima de produtos importados.

“Mas os impostos vêm embutidos nos preços de tudo! Não produzimos nem água potável”, elucida o irlandês Tedy, que trabalha como mestre de obras na construção de um condomínio de luxo com 16 apartamentos, todos com vista para o mar. Ele trocou Dublin pelo Caribe em 2004, quando veio passar férias temperadas por sol e mar e acabou ficando. Quando contamos que somos do Brasil, ele diz que a cem metros dali, no restaurante Paradise, “trabalha uma brasileira muito bonita”.

Engana-se quem acha que pelo arquipélago desfilam homens engravatados carregando malotes recheados de notas para cima e para baixo. Ninguém vê a cor da dinheirama que corre por lá. Há filiais de quase 300 bancos de toda sorte de nacionalidades, porém apenas 20 delas são agências de fato. O restante são pequenas salas escondidas dentro de prédios espelhados, identificadas apenas por discretas placas do lado de fora contendo palavras como “trust”, “funds” ou “banks”.

O buchicho na ilha se restringe a George Town, espécie de centro da cidade. Pelas manhãs, lá atracam até oito cruzeiros, de onde sai toda uma fauna de turistas animados com a possibilidade de nadar ao lado de arraias e golfinhos. Ou então de comprar relógios Rolex e diamantes sem impostos. Alguns, menos ambiciosos, contentam-se com camisetas cujas estampas mudam de cor no sol – o suvenir mais popular nas lojinhas. A moeda oficial é o KYD (Cayman Island Dollar), com um câmbio fixo de US$ 1,25. Mas o dinheiro emitido em Washington é aceito em qualquer lugar.

O american way of life reina na ilha. Burger King, Domino’s, Wendy’s e outros fast-foods estão por toda parte, inclusive na beira da praia. Não há calçadas. O único transporte público são raras vans, que na verdade funcionam como táxis. Tudo é longe, os deslocamentos são quase sempre feitos de carro. Como consequência, mesmo com apenas 50 mil habitantes, a ilha sofre de bizarros engarrafamentos na hora do rush.

 

“De dois anos para cá, Cayman mudou muito. éramos como os ianomâmis na Amazônia! Ninguém sabia que existíamos!” 



O único restaurante de comida caribenha típica que encontramos na americanizada George Town é o Miss Corita’s Kitchen, “open since 1941”. Miss Corita conta que todos os locais que tinham comércio ou moravam nessa região da ilha já se mudaram. Ela deu sorte: “Os negócios vão bem, não posso reclamar. O pessoal dos cruzeiros faz fila para comer aqui. E ontem mesmo nove repórteres vieram me fotografar”. Pedimos um peixe ao estilo cajun, acompanhado de arroz e feijão misturados como o nosso baião de dois, salada de repolho, banana e batata-doce assadas. Vinte dólares pela refeição mais saborosa da viagem. Em outros restaurantes, paga-se o dobro do preço por um hambúrguer e uma margarita servida em copo de plástico. “Sim, a vida é cara aqui. Mas não se precisa de muito para viver bem. Os estrangeiros que vêm morar ou passear aqui não sabem disso”, defende a simpática senhora, primogênita de uma linhagem de seis irmãos.

Um deles é Darwin, que devora um frango com as mãos na mesa ao lado. “De dois anos para cá, Cayman mudou muito. Éramos como os ianomâmis na Amazônia! Ninguém sabia que existíamos!”, compara. Com três brincos em cada orelha e o rosto de Che Guevara estampado na camiseta, Darwin é a sétima geração de homens do mar da família. “Não tivemos educação formal, mas rodamos o mundo em navios, adquirimos muita cultura”, gaba-se. Em terra firme, trabalhou com construção civil e, hoje em dia, é dono de uma galeria de fotografia. “Aqui é um paraíso. Não temos favelas como no Brasil.”

Quando saímos do restaurante, de repente encontramos uma cidade fantasma. Às 23 horas são poucos os bares abertos; restaurantes, não encontramos nenhum. Fomos obrigados a jantar pizza requentada na loja de conveniência de um posto de gasolina 24 horas. Tanque enchido, fomos até a única balada da qual ouvimos falar, supostamente bombada. Deparamo-nos com não mais que 30 pessoas, reunidas no que parecia uma festa de playground de prédio já no fim.

Sem ressaca, fomos na manhã seguinte conhecer Carla, a brasileira que o irlandês Tedy elogiou. “Você é do Brasil?”. “Yeah!”, responde a bartender (sua especialidade é o Mudslide, espécie de milk-shake alcoólico que leva vodca, licor de café, sorvete de creme e calda de chocolate). Original de Goiânia, ela trabalha das 8 às 23 horas para pagar o aluguel de US$ 1 mil do apartamento de dois quartos em que mora. Rala, mas gosta da vida caymanense que leva. “Além do mais”, ela explica, “aqui é mais fácil de me legalizar que nos Estados Unidos”.

Carla comenta de outra brasileira, que trabalharia para um milionário carioca cujo nome ela afirma desconhecer. “Só sei que ela ganha muito bem para passar o dia no computador sem fazer nada, numa salinha alugada de US$ 5 mil”, revela. (Se mesmo com um alto custo de manutenção – US$ 5 mil de aluguel + salário de funcionário + despesas extras – a manobra compensa, é de se imaginar o quanto o tal empresário anônimo pode estar economizando ao depositar suas cifras no outro lado do mundo.)

A amiga de Carla não topa dar entrevista. A fim de entender melhor o funcionamento de esquemas do tipo, fizemos blitz nos estacionamentos de bancos para tentar falar com funcionários. Encontramos Porsches, Mercedes, Jaguares e algumas galinhas (as aves andam soltas por todos os cantos da ilha), porém ninguém que cedesse muitas informações.

Após perscrutar George Town o suficiente, dirigimos nosso carro alugado pelo lado esquerdo da rodovia (a mão lá é inglesa) e chegamos a Seven Mile Beach. Lá reúnem-se os resorts de luxo de Cayman, como o suntuoso Ritz Carlton, com diárias a partir de US$ 700. As praias em frente aos hotéis são reservadas aos hóspedes, quase todos eles brancos como a areia. Nos quase 10 quilômetros de extensão de Seven Mile Beach, os poucos negros que encontramos eram funcionários dos hotéis – situação semelhante, vale lembrar, é encontrada em quase todas as ilhas do Caribe.

Continuamos subindo em direção ao norte. Igrejas protestantes começam a passar pelo para-brisa com mais frequência. Paramos no distrito de West Bay, onde a maioria da população local, composta de descendentes de jamaicanos, cubanos e africanos, reside. Quando paramos para consultar o mapa, Dennis, o primeiro e único homem com aparência de morador de rua com quem cruzamos, se aproxima e pede dinheiro para uma cerveja.

As tatuagens toscas – “Zulu”, “Jah lives”, “Angela 4ever” escritos nos braços – e a pele marcada de cicatrizes levantam uma suspeita que se confirma: Dennis é ex-presidiário. Passou 21 anos detido, segundo ele, por furtar uma carteira. “A polícia aqui é tolerância zero. Se te pegam com drogas você vai para o xadrez na hora”, diz. O jamaicano de 53 anos era pescador antes das grandes empresas pesqueiras chegarem à região. Agora vive de favor na casa do avô. “Aqui não existe pobreza, não tem por que morar na rua.” Sua irmã é casada com Thiago Cunha, brasileiro, técnico da seleção feminina de futebol da ilha – o esporte, aliás, é o mais praticado pelos jovens caimanês, ao lado do críquete.

A cada pergunta ou foto, Dennis pedia US$ 1. Despedimo-nos então e apontamos dessa vez para o sul do continente. Novamente, quilômetros e quilômetros de vazio, até que nos deparamos com uma casa simples erguida praticamente dentro do mar. “Estava justamente imaginando o quanto sou abençoada por morar onde moro”, confessa a caimanesa Daniela. Enquanto a avó de 95 anos dormia no quarto, ela se emocionou relembrando o drama da passagem do furacão Ivan na ilha, em 2004, que destruiu boa parte de sua vizinhança.

 

"Decidimos abrir uma conta off-shore, mas não tivemos sucesso. Ao que parece, o jeito mais simples é a distância"



Seu último trabalho era na sucursal do Unibanco, que fechou as portas após a fusão recente com o Itaú. Seus atributos incluíam viabilizar a vinda de investidores brasileiros. “Voavam todos de primeira classe. Meu chefe pedia para eu fazer reserva apenas nos melhores restaurantes e hotéis. E eu também organizava as festas, sempre com muita bebida e música. Como é que vocês chamam aquele ritmo mesmo? Rumba?”, deixa escapar. “Deve ser muito fácil abrir uma conta por aqui. Toda semana chegava alguém do seu país aqui para fazer isso.”

Empolgados com o comentário de Daniela, resolvemos tentar abrir uma conta offshore. Não tivemos sucesso: nos dois bancos que fomos exigiram um comprovante de residência nas Ilhas Cayman. Entretanto, não faltam sites na internet ensinando passo a passo como realizar a empreitada com sucesso. Ao que parece, a forma mais simples é mesmo a distância.

Resignados, voltamos a Seven Mile Beach para um último mergulho. Eis que de dentro de um Porsche Boxster prateado surge um ser envergado, a pele laranja de tão queimada. Era Iggy Pop. Sozinho. De bermuda. Emoldurado por palmeiras e uma água azul-turquesa – o cartão-postal mais clichê possível do Caribe com o personagem mais improvável no meio.

De imediato, foi pouco receptivo; depois, quando contamos que éramos da Trip, baixou a guarda. “Of course, that crazy brazilian magazine!”, exclamou o stooge, que foi capa de nossa edição de janeiro de 2006. “Tenho uma casa no sul da ilha, lá onde o pessoal do hip hop mora. Pego um voo de Miami, onde vivo, todo mês e venho passar uma semana aqui”, revelou, para logo em seguida andar, ou melhor, arrastar-se em direção ao mar.

PS: O verdadeiro nome de Iggy é James Newell Osterberg; Iggy é o nome artístico, derivado de Iguanas, a primeira banda da qual fez parte.

PPS: O mesmo réptil é tão comum na ilha que se diz que há mais exemplares da espécie que seres humanos. Está explicado.

Créditos

Imagem principal: Jorge Burch / Kameraphoto

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