O dentista brasileiro Sergio Torres foi para Angola e fez de sua profissão e da sua paixão pelo surf um instrumento de transformação social
Foi um conselho simples e tinha como intenção transformar a vida profissional do dentista Sergio Torres. Era 2012 e ele estava atendendo um paciente angolano que tinha uma ideia fixa. “Durante a consulta, só falava sobre como eu poderia me mudar para Angola e explorar um mercado até então pouco trabalhado, o de implantes e próteses dentárias”, conta. Por instinto, ele decidiu aceitar o desafio proposto na cadeira de seu consultório e partiu para Luanda, capital do país africano. Lá, trabalhou como nunca: abriu consultórios, ganhou dinheiro e transformou o sorriso de muita gente – e o próprio.
Sergio é hoje, aos 52 anos, um dentista apaixonado por sua profissão. Mas ainda jovem, antes até de entrar na faculdade, seu objetivo profissional passava longe da odontologia. Naquela época, fim dos anos 80 e começo dos 90, a rotina do paulistano era dedicada ao sonho de ser um surfista profissional e, assim, deu suas primeiras remadas em competições, chegando a enfrentar nomes que marcaram a história brasileira – Ricardinho Toledo (pai de Filipinho, um dos destaques do circuito mundial em 2018), Tadeu Pereira, Tinguinha, entre outros. Para ele, que sequer morava à beira-mar, era desafiador: “Eu era de São Paulo e não tinha como ganhar dos caras! Por isso eu tinha que me matar de treinar quando estava na praia. Amava aquilo”, explica, mas faz questão de lembrar que não foi nem a distância do mar nem o nível dos adversários que o fizeram desistir. “Meu pai me proibiu de surfar e então acabei virando dentista, não tive escolha.”
Poderia ser uma grande frustração, mas não foi. Sem traumas, seguiu na carreira odontológica. Tratou, porém, de abrir seu consultório em São José dos Campos, cidade paulista do Vale do Paraíba estrategicamente localizada no caminho para Ubatuba (SP), para onde seguia em qualquer brecha que tinha para pegar ondas. E assim foi por anos, até aceitar a sugestão de imigrar para Angola.
Uma vez em Luanda, Sergio não teve dificuldade para encontrar uma nova praia para abrigar seu hobby. Cabuledo é um pico bastante frequentado tanto por surfistas locais como por turistas, e foi lá o point escolhido por ele nos primeiros quatro anos. Isso até 2016, quando uma surf trip marcaria uma nova mudança em sua vida. “Eu havia levado mais três amigos para surfar e, na volta, parei num lugar que achava ser o pico, mas, chegando lá, não tinha nada de onda. Estávamos cansados e já tinha me conformado com a ideia de seguir viagem. Foi quando reparei em uma entrada na estrada. Não tive dúvida, mudei o curso. Eu fiquei louco na primeira vez que avistei Catanas Point. Foi muito marcante”, conta, sobre a vila de pescadores, com cerca de 300 habitantes, localizada na praia do Dengue.
O sol se pondo no mar, ondas longas extremamente manobráveis, porém fortes e rápidas, e praticamente ninguém para disputá-las – quase uma utopia hoje em dia. “Eu não acreditava, era o meu sonho e o de 99,9% dos surfistas. É como voltar aos anos 70, quando a gente surfava praticamente sozinho, só entre amigos.” O deslumbramento da paisagem, no entanto, contrastaria imediatamente com algo infelizmente bastante comum no país: a miséria. E aquilo mexeu com Sergio. “Quando conheci as pessoas, o vilarejo, só me veio uma coisa na cabeça: preciso ajudar.”
Do mesmo modo impulsivo de quando imigrou para o país africano, o brasileiro começou a projetar suas ações em Catanas Point. Idealizou as bases do que seria sua ONG – Acreditar É Preciso – e sua agência Catanas Point – Surf Adventures, com as quais organiza uma nova vertente de surf trips, em que, além de cair no mar, é possível participar de ações de impacto social, seja doando recursos financeiros, seja doando atenção. “Não basta surfar, curtir a natureza e as ondas. Queremos incentivar as pessoas a contribuir com a comunidade. Temos que retribuir de algum jeito”, explica.
De casa nova
De 2016, quatro anos após mudar da Angola, para cá, o eixo de vida de Sergio foi sendo levado cada vez mais para Catanas Point. Além dos laços profundos com a população, iniciou a construção de uma estrutura física, ainda em processo, em que realiza atendimentos dentários de emergência para o pessoal do vilarejo e também usa de base para as diferentes ações que realiza, de aulas de surf para as crianças a planos de reforma da escola.
Tanto na jornada inicial em Luanda, de expansão de suas clínicas odontológicas, como nas ações sociais, Sergio tem como sócio o amigo e também dentista Afonso Patú, 36 anos, nascido e criado em Luanda. O angolano conta que o vilarejo vê o brasileiro de maneira especial, como alguém que chegou lá para batalhar melhorias para a vila, carente de quase tudo. “Não há futuro para as crianças de lá, é um lugar esquecido. Meninos e meninas de 12 anos já correm o risco de se tornarem alcoólatras, não há um posto de saúde. Por isso o trabalho do Sergio tem sido muito importante”, diz. “O que ele está fazendo por essas crianças e até pelos mais velhos é grande. Existia uma escola desativada, sem teto e sem reboco nas paredes, que nós mesmos reformamos. Em breve, teremos, quem sabe, um posto de saúde também”, adianta Afonso, com um otimismo que não foge da realidade de que ainda há muito o que fazer antes de chegar nesse momento. Ao se lembrar da escola desativada que reabriram, por exemplo, conta que falta muita coisa: material escolar, carteiras, quadro, além de professores. Atualmente, a escola conta com uma professora contratada, que, ainda com uma estrutura em condições precárias, iniciou o ano letivo.
Para manter essas e poder planejar novas melhorias é que o dentista conta com o sucesso do projeto de surf trips sociais que criou. A primeira excursão organizada por ele a fim de buscar recursos se deu em maio de 2018 e, assim como foi na “descoberta” do point dois anos antes, estava acompanhado por amigos, entre eles, o colega de profissão e também brasileiro Fábio Araki, 38 anos, que realizou atendimentos a moradores locais. Assim como o anfitrião, ele foi impactado pelas diferentes nuances da experiência. “Me tornou mais humano. É um choque ver as crianças peladas, sem ter roupa pra vestir. É miséria mesmo, falta tudo”, conta, para em seguida lembrar também da parte paradisíaca. “Honestamente, é inexplicável. Foi minha primeira viagem ao continente africano e jamais poderia imaginar que fosse pegar tanta onda. O caminho de Luanda até Catanas é alucinante, a paisagem é linda e a estrada corta diferentes cenários: cachoeira, falésia com animais livres nos campos”, diz Fabio.
A próxima surf trip organizada por Sergio está programada para maio deste ano e não tem mais vagas; outras três já estão agendadas e têm recebido bastante procura. O idealizador acredita que é uma questão de tempo para que o pico vire um novo queridinho entre os surfistas e, enquanto rasga ondas em seu paraíso quase particular, vê sua ideia se materializando, ganhando corpo.
O paciente angolano que o aconselhou em 2012 estava realmente certo sobre o sucesso da empreitada, mas não tinha ideia de que a transformação na vida de Sergio iria muito além de uma oportunidade profissional. Ainda que de uma forma bem diferente da que desejou na juventude, ele se vê hoje realizando o sonho que precisou largar na juventude: “Quero viver do surf e ao mesmo tempo ajudar quem precisa a ter uma vida digna, com saúde e autoestima. É só isso que eu desejo nesta altura da minha vida”. Não é um sonho qualquer. É um sonho necessário.
Beleza e dureza
Flavio Forner, 45 anos, é fotojornalista e passa muito de seu tempo viajando a trabalho, muitas vezes retratando a difícil realidade de quem vive em ambientes miseráveis e hostis. Mas, mesmo em lugares carentes de tudo, Flavio consegue enxergar a beleza, como fica evidente nas fotos que fez em Catanas Point – e que ilustram esta reportagem. Este foi um destino que o marcou e ele conversou com a Trip sobre o que sentiu por lá.
Qual sua sensação sobre o projeto de Sergio em Catanas Point? Já acompanhei ações sociais com diferentes organizações, mas nunca uma com o envolvimento do surf. Em Angola, com suas inúmeras praias, e muitas comunidades de pescadores, as crianças possuem uma relação muito forte com o mar. Mas muitas pessoas por lá nunca foram a um dentista, por isso, sentem um certo receio, medo, ao mesmo tempo que são muito sorridentes e receptivas. É um povo muito resiliente e feliz, mas carece de coisas mínimas. As crianças brincam como podem, muitas não frequentam a escola, pois fica a 15 quilômetros da vila. O futuro deles é marcado pela falta de oportunidade.
Como foi para você a relação com os locais? Teve alguma história que marcou você? Quando cheguei à vila, vi muitas crianças com olhares desconfiados, uma delas era Zezito [na foto acima, com Flavio], sempre no canto, olhando, mas também sempre interessado em ficar por perto e ver como as coisas funcionavam. Eu estava com equipamentos de fotografia, filmagem, drone, e isso despertou nele uma curiosidade enorme. Todas as vezes que eu ia para beira do mar filmar ou usar o drone, ele vinha do meu lado e ficava olhando e tentando ajudar. É um garoto esperto, curioso e, ao mesmo tempo, muito resistente. Creio que tenha entre 8 e 9 anos. Ele não estuda, mas, quando chegamos com uma bolsa cheia de livros, ele logo pegou um para folhear, dava para perceber que queria ler, mas não conseguia. Andamos pelo cânion em uma caminhada de duas horas pelas pedras, mata e ele foi junto. Eu falei: “Você vai de chinelo mesmo? Vamos arrumar um tênis pra você”. Mas ele foi de chinelo e, em muitos momentos, descalço. Andava sempre a frente, pulando de um lado para o outro e, depois de duas horas caminhando no calor, voltamos para o acampamento e ele ficou brincando com outras crianças, não bebeu água nem comeu nada. Fiquei surpreso, pois não era uma caminhada fácil.
Você sente a diferença que o trabalho do Sergio faz lá? Já fui para vários lugares no mundo com dificuldades sociais e falta de recursos e vi situações muito piores. Em Angola, não existe uma guerra civil ou algo do tipo, isso foi no passado, hoje, eles estão em uma boa situação perto de outros países da África que sofrem com genocídios e epidemias. Mas nos faz refletir sobre as oportunidades que temos, a chance de conseguir evoluir para uma condição melhor. Não é fácil ver uma criança tão cheia de vida e aberta a aprender condenada a viver sem estudar. Zezito, como todas as outras, são importantes para o futuro daquele país. Vamos até lá sabendo que tem muita coisa a ser feita e que sozinhos não daremos conta, mas, ao mesmo tempo, sabemos que o pouco de tempo doado e a amizade os fazem mais encorajados a ir atrás dos seus sonhos.