por Luiz Alberto Mendes

Nasci por causa de um armário e entrei no mundo de ponta-cabeça, estigmatizado por preconceitos

Início da década de 1950. Naquele tempo, e vocês vão me ver falando "naquele tempo" várias vezes, tudo era muito diferente de hoje. As pessoas eram as mesmas, mas seus comportamentos, hábitos, moral e ética muito diversos quando comparados com os de agora.

Tempos em que as famílias eram mais unidas, mas muito mais repressoras. Uma moça conhecida foi mandada para um colégio interno estudar. Não era castigo, era privilégio conseguir uma vaga naquele colégio. A maioria das pessoas do país era analfabeta e pouquíssimos podiam aprofundar seus estudos. As pessoas trabalhavam, mas ainda passavam por necessidades. O colégio era de protestantes americanos e as chances de formação eram ótimas em relação às demais oportunidades escolares.

Durante anos a moça estudou naquele colégio. Nas férias, vinha para a casa da família, era a caçula da casa e suas irmãs a levavam para passear nos bailes e festas que frequentavam. A esse tempo, quase todos os namoros iniciavam-se nos bailes e as casa de danças se chamavam "gafieiras".

Foi exatamente em uma "gafieira" que a moça em questão, conheceu seu primeiro namorado. Ele era professor de dança e ambos formavam o par perfeito. Voavam pelos salões como pássaros encantados. Naquele tempo, namoro acontecia no portão ou na sala da casa da moça, sempre com alguém observando. O cuidado era extremo. O rapaz lhe fazia a "corte". E a família procurou saber, como era de praxe, quem era o sujeito e se ele era digno da "cortejada". E foi assim que os irmãos da moça (as famílias eram imensas) souberam que ele era casado e tinha um filho. Nem a moça sabia desse "detalhe".

Obviamente, a família proibiu o relacionamento e a moça se afastou. Mas o "gajo" (para usar gíria da época) era bom de conversa e convenceu a garota de que estava separado da mulher, que fora um erro casar e que não amava a esposa. Apaixonada, ela queria acreditar. Já que a família fechara a questão, ela jogou suas malas pela janela e saiu de casa como fosse na padaria e deu "linha na pipa". Foi morar com o rapaz.

Um mês depois, a família, depois de muito procurar, a encontrou. Eles estavam morando na Vila Maria, bairro urbano da cidade de São Paulo. Ela estava grávida. Por ninguém acreditar no futuro daquele relacionamento e por não serem casados, decidiram financiar o aborto. A criança, caso nascesse, seria "bastarda", não poderia ser registrada pelo pai e entraria na vida como filho de mãe solteira e pai desconhecido. Quase um "filho da puta". Passado algum tempo, a moça ficou grávida novamente. Financiado e incentivado pela família da moça, outro aborto foi feito.

Pela terceira vez, a moça engravidou. Não havia televisão e os meios contraceptivos eram limitados àquela época. A família financiou e incentivou, como das outras vezes, Como era recente, a moça grávida decidiu comprar um armarinho todo espelhado pelo qual se apaixonara e quando o companheiro recebesse seu salário, faria o aborto. Em seguida, o rapaz restou desempregado e logo não houve mais dinheiro e nem tempo para abortar. Assim, nasceu a criança.

Quem me contou essa história foi minha mãe. Essa criança da história sou eu, que nasci por causa de um armário e entrei no mundo de ponta-cabeça, estigmatizado por preconceitos.

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