Não existe almoço grátis

É fundamental nos perguntarmos: “Se Google e Facebook nos entregam um monte de coisas grátis, como é que eles lucram?”

Há muitos anos visitando Cusco, no Peru, o guia, diante de construções pré-colombianas, afirmou orgulhoso: as portas das casas não tinham trancas, porque no Império Inca não havia roubo. Eu me lembrei disso ao pensar no tema desta Trip. Se aquele guia estava falando a verdade, isso significa que o controle no mundo inca era inexistente? Não. Significa que era muito mais eficiente do que o ocidental, que exige trancas e cadeados.

Em maior ou menor escala, todos controlamos e somos controlados. Chefes, subordinados; namorados, namoradas; mães, filhos. Somos controlados enquanto dirigimos um veículo (velocidade, localização), quando entramos em um edifício ou circulamos por uma loja (câmeras de segurança), quando embarcamos num avião, quando pedem nosso CPF. Não há novidade no ato de controlar.

As razões alegadas para o controle tampouco são novas, e podem ser reduzidas, no limite, a duas: segurança e produtividade. Os motivos que levavam um soldado a passar frio, olhando para o horizonte, no alto da torre de um castelo, eram basicamente os mesmos que levam os funcionários de um aeroporto de hoje a observar as pessoas passando por raios X. E os motivos que levavam um capataz a controlar os escravos em um canavial eram basicamente os mesmos que fazem o gerente comercial de uma empresa, hoje em dia, medir quantas vendas cada funcionário fez no mês. Segurança e produtividade.

A novidade é que, com as tecnologias digitais, controlar está se tornando cada vez mais fácil e barato. Porque, para isso, você precisa antes de mais nada saber. E o mundo contemporâneo permite saber coisas a respeito dos outros numa escala gigantesca. Basicamente não existem mais segredos, e privacidade é algo sobre o que nossos netos lerão nos livros de história. Nenhuma pessoa escapa de poder ser monitorada, nenhuma conversa, em qualquer meio, tem garantia de sigilo, nenhum e-mail é seguro. A operação Lava Jato seria impensável, em sua abrangência e rapidez, há apenas alguns anos. Bastaria que alguns papéis fossem queimados, e nada se descobriria a respeito de coisa alguma.

GRANDE IRMÃO
Será que estamos ficando como os incas da versão contada por aquele guia? Que em breve não precisaremos mais de trancas e cadeados físicos, pois seremos controlados, em tempo real, de maneira absolutamente eficiente? Será que não teremos saída? Será que em nome de nos proteger do ladrão ou do terrorista nós teremos que nos conformar em ter cada passo nosso, literalmente, monitorado? Será que estamos de fato começando a viver a realidade antecipada por George Orwell em seu 1984?

O filósofo francês Michel Foucault morreu há pouco mais de trinta anos. Uma das obsessões dele era a história dos mecanismos de vigilância e controle das sociedades ocidentais. Por pouco ele não viveu para ver a onipotente web, os onipresentes smartphones e as oniscientes câmeras de segurança. O que Foucault diria de nosso tempo? É impossível falar em nome dele, é claro. Mas Foucault sabia que para toda ação existe uma reação, que cada tentativa de controle gera uma tentativa de escape. Por exemplo, se o Serviço Secreto norte-americano consegue grampear o telefone de qualquer chefe de Estado, não consegue evitar que o ato de ter grampeado, e que o que foi grampeado, sejam divulgados por um WikiLeaks da vida.

O importante, para nós, é compreender o que está acontecendo. É começar a perguntar: “Puxa, se Google e Facebook nos entregam um monte de coisas, grátis, como é que eles lucram?”. E parar de achar que existe almoço grátis.

Créditos

Imagem principal: Talita Hoffman

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