Estamos causando e não vamos mais parar de causar
Minha mãe acredita que o feminismo é um movimento sem sentido, protagonizado por mulheres que não têm muito o que fazer e querem importunar aqueles que têm. Quando me entrego a questionar estruturas de poder, ela murmura sozinha: “Vai começar”.
Outro dia, estávamos no sofá da casa dela tomando uma taça de vinho, quando resolvi “começar”:
– Mãe, lembra quando o papai chegava do trabalho e você servia o jantar para todo mundo?
– Claro que lembro. Tô velha, mas não tô doente.
Minha mãe e seu jeito delicado de dialogar.
– Então, lembra que tinha dias que ele fazia a gentileza de lavar a louça e que a nonna dizia: “Nossa, ele trabalhou o dia inteiro e ainda chega em casa e ajuda? Que homem!”.
Minha mãe dá um gole no vinho e levanta a sobrancelha.
– Velhice não é doença, Maria Emilia. Lembro de tudo.
Ela me chama pelo nome quando quer transmitir autoridade, escolho ignorar a espetada.
– Você tinha passado o dia fazendo o quê?
Pergunto e já emendo antes que ela tenha tempo de me dar mais alguma canelada.
– Você tinha passado o dia cuidando de quatro crianças, preparado comida, levado para o colégio, feito supermercado, buscado no colégio, dado banho, ajudado com a lição, preparado o jantar etc.
Ela concorda, balançando a cabeça com aquele entusiasmo que as mães manifestam quando algum filho ousa lembrar do trabalho que deu.
– O papai saía de casa para produzir dinheiro e você ficava em casa produzindo seres humanos.
Minha mãe, animada com tanto reconhecimento, bebe mais vinho; e eu sento um pouco mais na ponta do sofá.
– Você e ele tinham passado o dia inteiro trabalhando, portanto. Só que a gente vive num mundo que finge glamorizar a maternidade, mas que de fato glamoriza mesmo o dinheiro e aqueles que são capazes de acumular bastante riqueza. Só que a verdade é que o trabalho ao qual você se entregou pelos melhores anos da sua vida não tem nenhum reconhecimento. Zero. Porque, se tivesse algum, se a família fosse uma coisa tão importante quanto esses políticos safados pregam em seus discursos hipócritas em nome de Deus e da família brasileira, você teria recebido dinheiro por ele e hoje teria direito a uma aposentadoria. E seria um salário mais do que justo, já que você foi capaz de criar quatro seres humanos funcionais e que vivem bem graças à sua dedicação e às suas abdicações. Hoje, você não dependeria do dinheiro de ninguém e não teria passado anos achando que o que fazia era menor e menos importante do que o que o papai fazia, porque na verdade não é menos importante. É, aliás, mais importante.
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Agora minha mãe parecia triunfante
– É isso mesmo!
Ela disse eufórica.
– Então, mãe. Isso se chama feminismo. Bem-vinda.
Agora eu encosto no sofá e dou um gole no vinho. Ela me olha sem dizer nada e finalmente solta:
– Interessante. Nunca tinha pensado assim.
Minha mãe foi criada para reforçar todas as estruturas de poder e para não perceber como o machismo, o racismo e qualquer outra força opressora silenciava e invisibilizava multidões. Foi criada para não perceber que não era livre. Sociedades em que os oprimidos não se notam oprimidos funcionam em perfeita paz e harmonia; é quando o oprimido se percebe pelo que é que as revoluções começam. E nós estamos no meio de uma delas.
A partir desse ponto, não há volta nem recuo, não há governo ultraconservador e leis totalitárias capazes de fazer com que deixemos de nos perceber pelo que somos. Estamos enxergando coisas que jamais havíamos enxergado, reconhecendo ferramentas de machismo, de racismo e de LGBTfobia que passavam por nossas fuças sem se deixar notar, destruindo argumentos classistas e misóginos como nunca antes. Estamos causando e não vamos mais parar de causar.
Talvez porque o Cosmos tenha uma forma marota de mandar recados, foi justamente nessa época de revelações sociais que uma cientista de 28 anos desenhou o algoritmo que nos deixou ver pela primeira vez um buraco negro. A americana Katie Bouman não estava no noticiário nem há 24 horas quando homens aleatórios do mundo inteiro iniciaram uma campanha para provar que Bouman não era a maior responsável pelo feito sem precedentes, e que um rapaz que fazia parte da equipe de cientistas que se dedicava a tentar fotografar o buraco negro era quem, de fato, deveria ficar com o mérito. O tal do cientista teve que vir a público dizer que foi mesmo Bouman a responsável, e só assim aquietou a voz desses seres desesperados.
É esse o mundo em desconstrução em que vivemos. Um mundo em que as estruturas ainda são as mesmas, mas dentro do qual os oprimidos começam a se perceber oprimidos, e os atormentados pela perda de protagonismo berram furiosamente coisas absurdas e sem sentido, revelando o aspecto apequenado e paranoico de suas personalidades. Mas também um mundo no qual alguns homens brancos, heteronormativos e cis já entendem como funciona o privilégio que os beneficia todos os dias e que, dispostos a participar da transformação, entram na nossa trincheira.
É significativo que uma das maiores realizações científicas da história tenha tido o protagonismo de uma jovem cientista. Significativo que o buraco negro que Bouman conseguiu fotografar nos coloque no real contexto do que somos – habitantes de um planeta minúsculo flutuando solitariamente na imensidão do Cosmos, seres conectados por mistérios que jamais serão entendidos, homens e mulheres vivendo sobre uma mesma esfera e inundados com a maior das forças revolucionárias do universo: o amor que, como sugeriu Dante em A divina comédia, move o sol e também as demais estrelas.
Nada jamais será como antes.
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