”Às vezes, conseguimos acessar um lugar de silêncio em que é possível ouvir os sussurros da alma. Na mais escura das noites eu tive ouvidos para escutar”
A pior noite da minha vida chegou sem ser anunciada, e me pegou pelo fígado numa ordinária quarta-feira de maio logo depois do jantar. Os acontecimentos mais desafiadores de nossa existência não avisam, de fato, que estão a caminho e aparecem sempre como aquele convidado que ninguém esperava ver na festa, mas que entra sorrindo, já com uma taça na mão e pronto para quebrar a pista; tudo tão de repente que não há nem tempo de dizer “não, não quero você aqui”. Assim são as grandes tragédias pessoais.
Foi numa quarta-feira de maio de 2015 que, de forma acidental, descobri ter sido traída e entendi que meu casamento de dez anos estava com problemas. A partir dali eu vi dois caminhos a minha frente: um de amor e o outro de medo. O de medo me faria abaixar a cabeça e seguir dentro de um relacionamento que desmoronava; o de amor me obrigaria a fazer as malas, sair de casa e ir ter com o mundo.
Medo e amor são opostos da mesma forma que segurança e liberdade: não há como conviver com ambos. E um casamento de dez anos, mesmo ruindo, oferece segurança porque a alternativa é encarar a vida solo, um passo sempre difícil quando a gente não sabe direito quem é. Ao considerar a alternativa da travessia solitária 1 milhão de acontecimentos temerosos vêm à mente e é fácil não tomar nenhuma atitude. Não é mesmo difícil exercer o papel de figurante de sua própria vida: basta não fazer nada e seguir deixando o sistema entreter você.
Mas naquela noite de maio, completamente sozinha no meio da rua, escutei uma voz que me disse: “Fica calma. Não tem nada errado, não tem nada fora do roteiro. Tudo vem da luz”. Por alguns instantes, enquanto limpava as lágrimas que escorriam pelo rosto e tentava respirar, pensei ter ficado maluca. “Vem da luz”, repetia a voz a despeito de meu assombro. “Vem da luz.”
De alguma forma, mesmo afundada em um oceano de dor, entendi o que estavam querendo me dizer: tudo vem de um lugar de puro afeto, mesmo as coisas mais tristes e trágicas e doloridas. Era isso o que me diziam. Não me preocupei em tentar saber quem dizia, até porque estava afundada em uma dor que me incapacitava de fazer qualquer coisa que não fosse senti-la. Mas também não me preocupei porque a verdade é que a voz, de alguma forma, me acalmou.
Acho que a vida começa de verdade quando a gente recebe esses convites para se lançar em uma aventura, percebe que não está no controle e que, quem quer que esteja, passa uma boa parte do tempo tentando mostrar o caminho, que não conseguimos enxergar porque vivemos afundados em barulho e caos.
São duas as raízes de todas as emoções nesta vida: medo e amor. O ego vai sempre nos conduzir pelo primeiro, e a alma pelo segundo. O problema é que a voz mais alta é sempre a do ego, e apenas no silêncio é possível ouvir os sussurros da alma. Mas, às vezes, diante de uma dor sem tamanho, quando tudo parece ter sido perdido e a vida não vale mais um sopro, então talvez nessa hora consigamos acessar esse lugar de silêncio e escutar, porque, reduzidos a nada, já não há mais força sequer para não escutar. “Aquele que tem ouvidos para ouvir, ouça”, diz o evangelho de Mateus. E na mais escura das noites eu tive ouvidos para escutar.
Tomei então a decisão de topar a aventura e seguir pelo caminho do amor, que me levaria a fazer as malas e partir. Como contam os mitos, eu estava prestes a descobrir que é no momento mais sombrio que surge a luz.
Uma das maiores belezas do caminho do amor é que, quando você opta por ele, no lugar em que parecia haver apenas dor, surge o grande herói: você. “Você é mais do que pensa”, disse o mitólogo Joseph Campbell ao amigo Bill Moyers. “Existem dimensões do seu próprio ser e um potencial de realizações e ampliação da consciência que não estão incluídos no conceito que você faz de si mesmo.”
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Saia da bolha
O grande truque é que, para acessar o herói, você precisa fechar os olhos e pular no abismo. Para alcançar o grande personagem da sua existência é preciso topar a aventura, e a aventura nunca acontece em um lugar de segurança, nunca está dentro da zona de conforto. “No meio do caminho de nossa vida fui me encontrar numa selva escura”, escreveu Dante no primeiro dos cem cantos de sua comédia.
Todos nós nos encontramos com essa selva cedo ou tarde, e todos nós, como Dante, nos julgamos perdidos. E, perdidos, acabaremos descobrindo, como o poeta descobriu, que o trajeto que nos leva para cima tem início caminhando-se para baixo, para as sombras, para a escuridão, para os monstros.
Uma das coisas mais simples nessa jornada terrena é a tentação de nos alienar de nós mesmos. São muitas as provocações: consumo, entretenimento, drogas, erotismo, barulho. As instituições vão sempre nos encorajar à alienação porque não interessa a elas que entremos na selva escura de nossas vidas já que é lá que nos encontraremos com a verdade da consciência, e ela nos fará questionar tudo.
O que interessa às instituições é que permaneçamos adormecidos, entretidos e endividados porque dessa forma nos entregaremos à escravidão que nos permitirá não enfrentar estruturas de poder, aceitar o controle, consumir mais e, assim, nos anestesiar cada vez mais – neste mundo do entretenimento e do espetáculo sentir é um problema.
E, a bem da verdade, encarar uma viagem de autodescobrimento é trabalhoso, exige tempo e esforço, atenção e presença. Talvez eu possa deixar esse troço para amanhã, ou para nunca. Mas tempo não se acha, tempo se cria – e todos nós somos potenciais criadores de tempo desde que haja interesse e coragem.
Não é tarefa cheia de prazeres essa de se entregar a entrar na selva escura de sua vida. Você vai se deparar com monstros que não sabia sequer existirem, vai sentir dor e solidão e angústia. Mas, se topar a aventura de ser o herói da sua vida, vai entender que é possível experimentar a eternidade aqui e agora. Vai entender que o amor está nas coisas boas e nas coisas más, e que não há de fato diferença entre elas. E vai entender que Deus está no presente, nunca no passado ou no futuro, porque o passado é dor e o futuro é preocupação; mas Deus, esse Deus em você, é apenas amor. E todo o amor que há nessa vida está aqui e agora.
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