Notei que, para os outros, era difícil escrever. Como me tornei um leitor, para mim foi fácil
Sempre que escutava alguém tocando um violão na prisão, me emocionava profundamente. Sentia inveja, queria aquela capacidade, aquela arte, aquele tesão existencial. Imaginava que aquela pessoa podia escapar à dor de ser aprisionado, apartado de tudo que é bom, para o resto da vida. Eu vivia revoltado. Julgava-me vítima. Acovardara-me. Não era capaz de assumir minhas culpas e arcar com as consequências de meus atos.
“Burrinho” como eu era, demorei décadas para me tornar responsável por minhas atuações. E sofri como cão até aprender. Na verdade, nem sei se aprendi realmente. Nem sempre respondo de modo coerente. Sou carente e me perco fácil. Quando fui testar o instrumento, percebi que não tenho ouvidos para harmonias, embora seja ótimo em ritmos. Como não sou de assistir e sim de viver, fui atrás de outras artes que pudessem oferecer a satisfação necessária.
Foi dando aulas que notei que, para os outros, era realmente muito difícil escrever. Mas porque me tornei um grande leitor, para mim foi fácil. Amava e admirava profundamente escritores. Tentei escrever para que outros avaliassem, e, parece, fui aprovado. Pelo menos publiquei tudo que escrevi. Não paguei para editar e quero receber por tudo o que publicar. Pronto, pronto, eu havia conseguido. Agora, acontecesse o que acontecesse, eu possuía uma forma de expressão que remetia diretamente à alma. A angústia tornou-se verso. E os versos tornaram-se textos que falavam de um ser carente de outros seres. Ficava olhando textos meus, sem conseguir acreditar que havia sido eu quem expressara toda aquela sensibilidade e profundidade.
Na prisão aproximei-me de companheiros que estudavam, liam e pensavam como eu. Do nada, construímos um espaço cultural. Quando um de nós lia algo interessante, todos os outros procuravam se informar. Um livro bom circulava entre todos nós. Era muito didático porque conversávamos sobre todos os assuntos lidos seriamente. Não tínhamos professores para nos ensinar. Mas com nossos vários pontos de vista, foi possível construir um pensamento muito mais abrangente. Conversávamos muito sobre o que estudávamos e pesquisávamos.
Nosso amigo Pinduca era pintor. Conhecia algumas técnicas que trouxera da rua e submeteu as outras ao seu domínio, durante os anos preso. Era quase impossível encontrá-lo longe de seus quadros e tintas. Estava sempre pintando alguma coisa. E quando não havia nenhuma superfície, ele pintava a si mesmo, tatuando-se. Conheci muitas pessoas que possuíam verdadeiras obras de arte que ele desenhara no peito, nos braços e nas costas. Ele contava histórias de haver tatuado no sexo e no rosto daqueles mais aficionados. Todo homem, com certeza, sentirá gastura e até arrepios só de imaginar. Aos poucos ele foi saindo do mundo real, em direta transposição para o mundo que imaginava.
LEIA MAIS: A Estrela, uma revista feita por mulheres e homens do cárcere
Chegamos à mesma época na prisão. Como tínhamos inclinações idênticas, logo éramos amigos inseparáveis. Minha mãe gostava muito dele e sempre trazia algum doce para ele na visita. Mas o sujeito pintava demasiadamente. Não parava. Parecia ensandecido. E foi piorando quando constataram câncer em seus ossos. A realidade agora era a sua dor, morfina, maconha, quadros e pincéis. Era uma luta imensa para mantê-lo. Nós, presos, sabíamos do valor de seu trabalho. Tentávamos, inutilmente, proteger e amparar o amigo que, imerso em sofrimento, arregalava os olhos a cada gota de dor.
Ele morreria. Conversei, ele sabia que estava morrendo. Por trás da dor ele me olhava com seus olhos líquidos e longos. Só então tive coragem de perguntar algo que me intrigava: por que ele pintava tanto, se nem dava valor ao que produzia? Fez quadros e tatuagens para todos. Até os diretores e guardas, nossos inimigos, queriam ter o privilégio. E seus trabalhos cada dia ficavam mais suaves, cores mais claras que brilhavam estranhamente.
Respondeu-me que buscava o traço perfeito. Aquele que expressasse tudo o que ele queria dizer e que todos pudessem entender com uma simples batida de olhos. Logo em seguida, Pinduca faleceu. Fiquei dias triste, pensando em sua definição de artista. E, de repente, me resolvi para o resto da vida. Eu seria um escritor e estaria em busca do melhor texto. Aquele que expusesse tudo, com o mínimo de palavras possível (por mais que as ame). E que, em uma simples lida, todos pudessem entender com clareza, e sem dúvidas.
Continuei a corrida que o amigo Pinduca dera a largada. Como ele buscava a melhor pincelada, eu busco o melhor texto. O texto perfeito.
LEIA TAMBÉM: Todos as colunas de Luiz Alberto Mendes