Você já me viu nu

Haviam abusado de mim desde menino. Agora eu era alguém que pensava e os odiava profundamente

Há um risco que um monte de gente assumiu comigo, essa gente boa que me acompanha há tantos anos. É incrível, encontro gente que me lê na Trip há mais de década. Fico chocado ao mesmo tempo que me sinto nu, envergonhado. Vocês sabem tudo de mim, me coloquei do avesso nesta coluna, dei tudo de mim. Meus amigos assumiram o risco também. Pagaram para ver. Eu próprio era um risco. Jamais passei em um exame de cessação de periculosidade. Os psicólogos, psiquiatras, sempre foram contra que me soltassem, afirmavam que quase necessariamente eu voltaria ao crime. Para eles, eu era um criminoso contumaz, irrecuperável. Mas completei 31 anos e dez meses de prisão e a lei dizia que era demasiado: deveriam me soltar.

Para as autoridades, guardas, chefes e diretores de cadeia, não demoraria a voltar ou a ser morto pela polícia. Acompanharam minha evolução de analfabeto a escritor. Haviam me espancado, torturado e sacrificado em suas cadeias infectas. Sabiam que tinha em mim um inimigo considerável. Haviam abusado de mim desde que eu era um menino. Agora eu era alguém que pensava e os odiava profundamente. Uma granada sem pino rolando na direção deles.

Mas eu já não odiava ninguém. Eles nem desconfiavam que há anos eu já havia me descolado da lógica e cultura criminal. Na cadeia, para o preso, guarda de presídio é polícia. Ou seja, sujeito desprezível, alguém que nós olhávamos e não víamos, eram como pedaços moventes da prisão. E era super-recíproco. Quando podiam, eles nos pegavam de cano de ferro e nos quebravam. Quando havia rebelião, cada um deles era cassado por suas vítimas, que queriam a desforra. Até diretores foram assassinados barbaramente.

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Só quero viver

Pouco me importava o passado, queria tudo o que ainda estivesse ao alcance. Só isso e mais nada. Só eu estava seguro sobre mim mesmo. Não acreditava em bem ou mal, mas, sim, em responsabilidades. Com certeza não faria nada que ferisse alguém, a menos que fosse para me defender. Caso agredido, reagiria. Estava sedento por um pouco de vida sem problemas, limpa e livre. Colocava todas as minhas fichas em mim. Aceitei o desafio com a certeza de que o venceria. Só eu tinha essa segurança. De onde vinha? Das minhas entranhas, da minha voracidade por viver. Estava preso desde moleque, conhecia poucos metros quadrados do mundo e ficaria o resto da vida entre grades e muralhas. Não queria glória e nem dinheiro, só o suficiente para poder viver.

Ser livre era um sonho impossível, uma ilusão que combati com todas as minhas forças por décadas. Era mais fácil pensar que tinha nascido e que morreria ali.  O resto era constituído do mesmo material dos sonhos. O mundo era quimera, não existia de fato. A janela na cela mostrava um quadro que se renovava o tempo todo, apenas isso. Era o meio de vida que inventei para sobreviver.

De repente, me soltaram. Foi empolgante, emocionante, enlouquecedor. Mas nada como aquela explosão de prazer e alegria que eu imaginava que seria. Houve quem ficasse contente e quem, como os guardas, disesse: “Amanhã estará de volta, só para nos dar trabalho”.

Será que agora acreditam? Vocês que me acompanharam, porque ler é acompanhar, agradeço a fé que colocaram em mim. Vocês entenderam, ao sentir o que eu tirava da alma, das entranhas, que nunca houve risco de fato. Eu apenas fui vivendo minha vidinha de escritor, publicando meus livros, fazendo minha coluna e agora até fazendo roteiro de cinema. Passados 15 anos, jamais passei perto de uma delegacia. Será que estou aprovado? Provei que não havia risco algum em apostar em mim. E assim sigo, tranquilamente, capaz em minha vontade e em posse da minha potência. Agora porque eu quero, porque eu gosto.

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