Depois que começou a trabalhar fora, aos 47 anos, minha mãe virou uma outra mulher: tinha relações com o mundo, crescia e florescia. Era quase uma militante feminista
Minha mãe contava que somente aos 47 anos se sentiu gente, participante e compartilhando da vida com as outras pessoas. Foi quando começou a trabalhar fora de casa. E ela era apenas uma copeira, servia café em uma revendedora de carros. Até então, meu pai, machista e possessivo ao extremo, não permitia que ela trabalhasse fora de casa. Por conta de seu alcoolismo, ele não conseguia mais trabalhar regularmente. Só então, porque começaram a faltar as coisas em casa e sob ameaça de despejo, ele aceitou o inevitável. Eu estava preso havia quase uma década e nada podia fazer, pois ele mandava nela.
Confesso que também achava que minha mãe não devia trabalhar fora de casa e, revoltado, o ofendi. Ele não era homem nem para sustentar sua companheira? Na época, o preconceito contra a mulher que trabalhava era enorme. Elas eram tidas quase por prostitutas e os maridos que permitiam eram vistos como cafetões. Minha mãe era santa, pelo menos para mim, seu filho único. Eram outros tempos, a gente nem pensava que a nossa mãe tinha necessidades sexuais como nós. Mas minha mãe já gostava de rock, era fã “de carteirinha” de Roberto Carlos e, para ela, ter um trabalho foi uma libertação. Logo depois, eu, já lendo e estudando muito, sentindo a alegria e o desenvolvimento dela, comecei a mudar meus conceitos.
Realmente foi uma bênção para ela. Era uma outra mulher, tinha relações com o mundo, crescia e florescia. Lia meus livros e discutia comigo qualquer assunto. Era uma libertária, quase uma militante feminista. Vestia-se bem, fazia regime e tornara-se bonita, simpática e falante. Passei a admirar muito dona Eida, minha mãe. Aos poucos, acabou com todos os meus preconceitos. Meu pai a aporrinhava, cheio de ciúmes, mas ela jamais deixou de me visitar na prisão por mais de 20 anos. Tive compromisso com várias mulheres durante o tempo de prisão, mas ela sempre foi o centro de minha vida. De repente, na saída do trabalho, ela teve um derrame cerebral. Passou meses para se recuperar, mas seu lado direito ficou paralisado e sua mente um tanto prejudicada. Meu pai, sentindo que não haveria ninguém para cuidar dele dali, antecipou-se e morreu sem mais delongas.
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Nesse tempo, me casei, minha companheira foi morar em casa e cuidou dela. Tive a satisfação de lhe dar um neto, Renato, que ela adorava. Morreu quando se preparava para comemorar o primeiro ano de seu neto. Estava trabalhando na prisão, quando me comunicaram. Fiquei passado, sem saber ao certo o que pensar. Não me foi permitido ir ao seu enterro. Nem fiz muita pressão. Caso fosse, chegaria em carro de preso, algemado e escoltado por dois policiais, seria motivo de escândalo. Não chorei, sabia que para ela seria uma libertação: sentia-se uma aleijada e sofria muito com as sequelas deixadas pelo derrame. Dona Eida fora muito ativa, nós dizíamos que ela era elétrica. Morreu dormindo, e minha ex-esposa a encontrou com um sorriso no rosto.
Autonomia e poder
Minha mãe foi a pessoa que mais gostou de mim e, por conta disso, foi minha principal vítima. Eu a fiz sofrer demais com minha vida louca e estúpida. Meu sonho era sair da prisão e dar-lhe o prazer de ter um filho como sou hoje. Sinto muita falta dela. Seus conselhos e sua visão sobre a mulher, trabalho e vida fazem parte de mim e de tudo o que falo e escrevo.
Foi o trabalho que modificou a vida de minha mãe? Sim, porque lhe deu autonomia e poder: ela sustentava a casa, passou a mandar em si mesma. O trabalho propiciou que ela travasse relações com o mundo e conhecesse os outros. Deu espaço para que se desenvolvesse enquanto pessoa e ultrapassasse seus limites. Ao fim, apesar de mim, ela conseguiu ser feliz.