O havaiano Kai Lenny é, além de rei do stand up paddle, referência no wind, kite, surf de pranchinha e de ondas grandes. isso tudo com apenas 22 anos
– Oi, você quer surfar Jaws de foilboard agora?
– Claro! Te encontro em alguns minutos.
O diálogo acima aconteceu por telefone entre o atual seis vezes campeão mundial de stand up paddle, surfista, kitesurfista, windsurfista e surfista de ondas grandes Kai Lenny e o havaiano Laird Hamilton, um dos maiores atletas aquáticos da história. Mesmo para Kai, habituado a conviver com Laird, foi especial receber a ligação.
"Foi assim que decidi surfar Jaws pela primeira vez na vida", diz Kai. "Poderia ter feito antes, mas essa é uma onda dura que você só tem que enfrentar quando estiver completamente seguro. Surfar com o foilboard ali é provavelmente uma das coisas mais difíceis que alguém pode fazer na água, mas quando Laird me ligou senti que era o dia", lembra o garoto, que tinha apenas 16 anos na ocasião.
Depois daquele dia, Jaws virou rotina e seu lugar favorito no mundo para surfar. Kai, predestinado pelo nome – que significa oceano em havaiano –, cresceu em Maui. O garoto, hoje com 22 anos, é um prodígio dos esportes aquáticos. Faz tudo, e faz tudo muito bem. No dia desta entrevista, recebeu a reportagem da Trip pontualmente em sua casa, que na verdade é a edícula da casa em que moram os pais e o irmão mais novo. Abriu o portão descalço, como um típico morador da região, e nos recebeu sem qualquer tipo de assessor, mesmo sendo patrocinado por gigantes do mercado, como Hurley, Red Bull, Go Pro, TAG Heuer e Nike. Uma raridade para atletas desse nível.
Na estante da sala, impecavelmente arrumada, alguns dos muitos troféus que já ganhou nas diversas modalidades em que compete desde a infância, miniaturas de barcos de velocidade e pilhas e mais pilhas de discos de vinil. The XX, The Smashing Pumpkins e Led Zeppelin são os do topo. Quando percebe que reparei nos discos, diz: "Adoro vinil, mas também sou viciado no Spotify. Meus amigos me zoam porque escuto coisas melosas ou pop, tipo Imagine Dragons, mas antes de entrar na água prefiro rap".
Ser humano raro
Kai nunca desvia o olhar quando fala. Pronuncia as palavras de forma completa e não usa dezenas de gírias, como os garotos da sua idade. Tem uma presença forte, raciocínio rápido, postura otimista e se comporta com a segurança de um homem muito mais velho. Kai aprendeu a surfar aos 4 anos. Aos 6 já praticava windsurf , uma especialidade dos pais, que mudaram da ilha de Oahu para Maui porque lá as condições de vento eram mais favoráveis. Um ano mais tarde, aos 7, ele passou a praticar a modalidade pela qual é mais conhecido, o stand up surf, e aos 9 já arriscava o kitesurf.
O início precoce fez com que o garoto nunca tenha nem pensado em ser outra coisa na vida: "Soube que seria um profissional desde que peguei minha primeira onda. Estou vivendo um sonho, porque sou um cara que tem pelo menos quatro pranchas na caçamba do meu carro com tamanhos, formatos e funções distintas. Meu trabalho é entrar na água e me divertir, e eu ainda sou muito bem pago para isso. Eu faço o que as outras pessoas fazem em suas horas de lazer. O que pode ser melhor que isso?", diz.
Um de seus maiores patrocinadores, Bob Hurley admira o garoto desde pequeno e diz que o havaiano transcende as qualidades de um atleta comum: "Kai é um ser humano raro, abençoado e mágico. Sua curiosidade e positividade são contagiantes, qualquer um que conviva com ele sente isso. Sua paixão por inovação dentro da água é uma inspiração não apenas para outros atletas, mas até mesmo para o nosso time de designers", diz.
O pai e empresário, Martin Lenny, diz que Kai sempre foi dedicado e motivado. "Ele é disciplinado por natureza. Nunca tive que forçá-lo a acordar para treinar nem dar broncas sobre alimentação ou horários. Ele sempre soube o que deveria fazer", diz. O próprio atleta conta que tem tentado se cobrar um pouco menos. "A maioria das pessoas tem dificuldade para manter o foco, o meu problema é justamente o contrário, eu preciso me esforçar para relaxar. Quando tenho um objetivo, eu simplesmente não enxergo mais nada que esteja ao redor a não ser aquilo que quero. É maior do que eu", conta.
Nem a adolescência conseguiu desviar o atleta das competições. Os poucos e bons amigos de sua idade adotam o mesmo estilo de vida de Kai, e desde a infância ele convive com pessoas pelo menos 20 anos mais velhas do que ele. "Coloquei tudo em jogo. Nunca bebi, não usei drogas, não tive várias namoradas, não ia para as festas, nada disso. Hoje tenho tentado não me cobrar tanto e aproveitar outras situações. Sigo meu instinto para saber se aquilo é uma distração em relação ao meu foco ou se é algo que não atrapalha. Eu sei o que eu quero e não gosto da ideia de me perder pelo caminho." Quando fica ansioso, antes de uma competição importante ou antes de surfar Jaws no inverno, quando a onda fica gigante, o havaiano gosta de sair para correr. Diz que já tentou meditar e fazer ioga, mas assume que como hiperativo sentiu bastante dificuldade.
Além de Laird Hamilton, Kai cresceu surfando com lendas como Robby Naish e Dave Kalama. Segundo ele, esses caras nunca foram seus ídolos no sentido tradicional porque são seus amigos. "Eu cresci vendo esses caras e queria ser um deles. É como os garotos brasileiros que querem ser o Neymar. Mas é engraçado porque eles nunca foram ídolos daqueles que você grita e treme quando vê porque sempre estiveram na praia comigo."
Quando pergunto se ele tem outros ídolos no esporte, ele abre um sorriso: "Sou um grande fã do Ayrton Senna. Li sobre ele e vi um documentário que contava a sua história. Ele sempre foi uma grande inspiração e eu sentia que queria fazer na água o que ele fez nas pistas. Outros atletas que considero ídolos são o motociclista americano Travis Alan Pastrana e o italiano Valentino Rossi. Assim como Bruce Lee e Kelly Slater. Acho que esses caras têm uma conexão especial com seus corpos", diz.
Sem dor
Entre os amigos mais velhos com os quais convive está um brasileiro que mora em Maui, Yuri Soledade. Yuri conhece o garoto desde os 5 anos, mas passou a trabalhar com ele apenas depois dos 15. O surfista e empresário soteropolitano é uma referência forte para Kai. "Eu ajudo na parte técnica e competitiva. Acompanho Kai em eventos e em viagens para aprimorar o surf dele em ondas grandes, SUP e pranchinha. Espero que ele venha a ser o maior waterman de todos os tempos, dominando principalmente o big surf e o stand up, mas acima de tudo que ele seja um ótimo exemplo para as gerações futuras porque é uma pessoa especial dentro e fora da água", diz.
Quando pergunto a Kai Lenny qual a sua maior qualidade como atleta, ele cita, além da capacidade mental de manter o foco e aguentar pressão em momentos decisivos, um segredo: a tolerância extrema à dor. "Nunca falei sobre isso antes. É como se eu tivesse um interruptor na cabeça que desliga quando começo a sentir dor. Há dois anos sofri um corte profundo no pé, entre os dedos, surfando Jaws. Fiquei sob a água durante 1 minuto com o pé praticamente dividido em dois e não senti nada. Quase quebrei minha perna esse inverno, as pessoas ao meu redor gritavam e tudo o que eu pensava era: ‘droga, não vou poder surfar por uns dias’", revela, sorrindo.
Durante a entrevista, Kai cita Gabriel Medina como exemplo de atleta focado e aproveita para dizer que ama todos os esportes que pratica, mas que a origem de tudo sempre foi o surf. Pergunto se ele tem vontade de competir no circuito mundial ao lado de Gabriel, e ele, pela primeira vez na entrevista, fica pensativo: "Eu amo competir porque esses eventos afloram o que tenho de melhor. Sou competitivo até com coisas que não são o meu trabalho. Adoro andar de skate e quando assisto a um campeonato fico com raiva por não estar participando. Acho que seria difícil abdicar dos outros esportes porque para estar ali eu teria que deixar o resto de lado. Mas nunca imaginei que seria uma coisa só ao longo da vida. Tenho desejo de ser muitas coisas, sinto que minha mente é muito aberta. Quando vejo uma banda legal, fico pensando que poderia ser músico. Na semana seguinte acho que ser ator ou pilotar carros seria a coisa mais incrível do mundo. Então... quem sabe um dia…", completa o multiatleta.