Em artigo para a Trip, o ex-ministro da Justiça, José Carlos Dias, pontua: “O uso de drogas não pode ser caso de polícia”
O Supremo Tribunal Federal tem a oportunidade de tirar o usuário de drogas da mira da polícia. Será julgado nesta quinta-feira o Recurso Extraordinário em que se discute a inconstitucionalidade do crime de porte, por ferir o direito à intimidade e privacidade. Caminho semelhante ao de países vizinhos, como a Argentina e a Colômbia, que descriminalizaram o porte de drogas pela via judicial.
O direito penal não se presta para coibir condutas que não causam danos a terceiros. Nesse sentido vale lembrar a lição do Professor Miguel Reale Jr. “A intervenção penal em um Estado Democrático de Direito deve estar revestida de proporcionalidade, em uma relação de correspondência de grau entre o mal causado pelo crime e o mal que se causa pela via da pena”.
O país tem a quarta maior população prisional do mundo e é que mais cresce. Sendo que os três primeiros países (Estados Unidos, China e Rússia) estão no movimento oposto, diminuindo suas taxas de encarceramento. Especialmente nos EUA, embora a federação ainda mantenha a repressão ao usuário, diversos Estados abriram mão da política proibicionista, sobretudo em relação à maconha.
No Brasil o tráfico de drogas é o crime que mais encarcera no país, representando 27% da população carcerária. A mobilização estatal na repressão do crime de tráfico tem aprofundado o cenário de criminalidade e exclusão social, sem conter qualquer avanço na oferta e procura das drogas. Não é o consumo de substâncias psicoativas que gera violência, mas a manutenção do mercado na clandestinidade.
A atual lei de drogas (11.343/2006), que teoricamente avançava por não punir com pena privativa de liberdade o usuário, levou na prática a um aumento expressivo do encarceramento por tráfico. Isso se deu em razão da fragilidade na diferenciação entre traficante e usuário, permitindo que a polícia e promotor tenham ampla margem subjetiva para enquadrar o usuário no tipo penal que achar conveniente. Se a pessoa é branca e de classe média, é usuário; se é negra e vive na periferia, traficante. Tais aspectos poderiam ser corrigidos pelos juízes, que deveriam exercer o papel de analisar a legalidade da prisão e a justa causa da acusação, respeitando o espírito despenalizador da lei. Ao deixar de cumprir o seu papel, o Judiciário chancela uma série de abusos cometidos pela polícia, contribuindo decisivamente para piorar a tragédia social decorrente da guerra às drogas.
Pesquisa realizada pelo Núcleo de Estudos da Violência da USP, publicada em 2011, escancara que quem está sendo preso é o usuário e o pequeno traficante. Os dados reproduzem a seletividade no sistema de justiça criminal. Segundo o estudo, 87% das prisões em flagrante foram efetuadas pela PM, e 82% delas ocorreram em via pública. Em 39% das ocorrências foi apreendido apenas um tipo de droga, em pequenas quantidades. A maioria dos presos (75,6%) é composta por jovens de idades que vão de 18 e 29 anos, e 59% são negros e pardos. Para evidenciar ainda mais o perfil daqueles que estão sendo presos, 57% não tinham antecedentes criminais. O que chama muito a atenção é que em 48% dos casos a droga não foi apreendida junto com o acusado e que 74% dos casos contaram apenas com testemunhos de policiais. É importante registrar também que mais da metade das mulheres que se encontram presas são acusadas do crime de tráfico e que o encarceramento das mulheres é determinante na desestruturação familiar.
O tráfico de drogas gira em torno de uma rede estruturada de crimes (mortes, torturas, corrupção, lavagem de dinheiro, aliciamento de jovens etc) e funciona de maneira altamente profissionalizada. É muito comum que usuários e pequenos traficantes não comprometidos com o crime, ao serem presos, diante da omissão estatal nas cadeias, acabem se envolvendo nessa malha complexa do crime organizado. O custo social dessa política é tremendo, sem contar os gastos públicos com o encarceramento, arsenal bélico e movimentação da máquina do Judiciário.
Um ponto importante é que o receio do estigma e de ser preso afastam o usuário da rede de atenção e tratamento, o que acentua ainda mais as consequências devastadoras do ilegalidade. Por fim o proibicionismo não permite pesquisas e avanços científicos com substâncias psicotrópicas, tanto para cura de doenças como para o tratamento quando se verifica o uso problemático.
Existe uma falsa crença de que a criminalização é a melhor forma de o Estado dar uma resposta contundente aos conflitos sociais. Nessa perspectiva o direito à liberdade sofre ataques de todos os lados. Quando o assunto é drogas, a irracionalidade é ainda maior, e muitas vezes o discurso esbarra em dogmas religiosos e morais. Não se discute que o uso problemático de drogas é fonte de inúmeros males. No entanto não é razoável supor que alguém seja preso porque possui uma dependência química ou porque usa drogas de forma recreativa.
O uso de substâncias que causem alteração na consciência é intrínseca ao comportamento humano. Não dá para continuar tratando como problema de polícia aquilo que deve ser regulamentado a partir de políticas públicas consistentes de saúde, educação e redução de danos.
A liberdade de um país é inversamente proporcional a interferência do Estado nas relações em sociedade. É fundamental que se garanta a cada indivíduo o direito de dispor de seu corpo e de sua vida do jeito que lhe aprouver, desde que não cause dano a seu próximo. Se desejo portar uma droga para meu uso pessoal, a lei não pode me impedir, como é meu direto portar formicida pensando no meu suicídio. É isso que se chama o exercício do direito de viver e de morrer, se for este o meu desejo.
*José Carlos Dias é advogado criminal e foi ministro da Justiça do governo Fernando Henrique Cardoso e Secretário de Justiça de São Paulo no governo Franco Montoro. Marina Dias é advogada criminal, membro da Plataforma Brasileira de Política de Droga e idealizadora do documentário Sem Pena.