Carta aberta a Edson Arantes do Nascimento, quer dizer, a Pelé, ou melhor, aos dois
Caro Edson Arantes do Nascimento,
Seu filme está para estrear. E eu ando pensando em você. Não sei bem se é em você-Edson ou em você-Pelé. Acho que é no Edson. Aliás, sabe que sempre fiquei muito encafifado com essas suas manifestações públicas de esquizofrenia? Desde criança.
Sua dualidade misteriosa costumava me levar a reflexões ontológicas impúberes. E para mim, foi você, caro Rimbaud da pelota cinzenta, quem primeiro sugeriu a máxima existencial favorita: "Eu é um outro".
Então, obrigado, Edson. Seus aforismos rasteiros são códigos-fonte fundadores do meu sistema operacional. Claro que houve outros. Elucubrações sobre a infinitude do tempo, como o cartaz "fiado só amanhã" que vi colado na parede do bar da esquina. Reflexões sobre a relatividade, como o "que Deus lhe dê em dobro tudo que me desejares", inscrito num pára-choque de caminhão. Trechos de uma deontologia dominical para macacos de auditório pregando que "do mundo não se leva nada. Vamos sorrir e cantar. Lalarárá".
Mas teve um outro comentário sobre você que adubou muito a minha metafísica infantil. Ouvi pela primeira vez quando tinha uns 6 anos. Eu escutava um compacto simples que tinha, do lado A, a narração do milésimo gol e, do lado B, uma canção sua dedicada às criancinhas do Brasil. Foi aí que a doce Veridiana, cozinheira lá de casa, desferiu com uma contundência excepcional: "O Pelé é um preto de alma branca".
Não entendi. Tá certo que, como cantor, você é garganta de pau, mas "preto de alma branca" me pareceu retumbante demais.
"Ela quis dizer que o Pelé é Prestígio, entendeu" Negro por fora e branco por dentro", disse o seu Domingos, motorista do Simca Jangada do meu tio. Entendi menos ainda. Quer dizer que, além de ser Edson e Pelé, ele ou eles ainda são bicolores? "Não. É que o Pelé é um cara que nega a raça." Raça? Piorou.
Eu demorei muito a entender o conceito de raça. Afinal, morava no Brasil e para mim sempre pareceu óbvio que entre o branco e o preto há mais tons de marrom do que sonha a vã ideologia ocidental.
Misto-quente
Não pense que estou lhe escrevendo, Edson, para lhe cobrar tardiamente uma postura engajada. Não acredito que alguém, só por ser preto, judeu, árabe ou inca venusiano, tenha que viver escravo da questão racial. Qualquer pessoa é livre para ignorá-la a vida inteira. Se conseguir.
Mas eu só me lembrei dessas histórias da infância - e de você - porque acabei de terminar um documentário sobre relações raciais no Brasil. Ouvi depoimentos muito interessantes. Olha só.
Sergio Pena, geneticista: "Você tem dois pais, quatro avós, oito bisavôs, 16 trisavôs, e a coisa vai crescendo exponencialmente. Há 750 anos, você tinha 1 bilhão de antepassados. Só que, nessa época, não havia 1 bilhão de pessoas na Terra. Ou seja, nós todos temos algo de consangüíneo". Lilia Schwarcz, antropóloga: "Na última pesquisa em que se perguntou aos brasileiros "Qual é a sua cor"?, as respostas foram 126".
Helio Santos, economista: "A miscigenação no Brasil sempre foi um álibi para se manter tudo como está. Nossa miscigenação não vem da união familiar. Vem das "visitas" que o senhor de engenho fazia às senzalas".
Eduardo Gianetti, economista: "É preciso muito cuidado ao importar conceitos. Temos que fazer um esforço para entender de que maneira o preconceito permeia a sociedade brasileira. E eu acredito que se trate de um preconceito social".
Edna Roland, psicóloga: "Mas o que é o "social" no Brasil? Durante quatro séculos, o trabalho era algo reservado exclusivamente aos não-brancos. E a herança da escravidão permanece até hoje".
Sergio Pena, geneticista: "Raças humanas são construções socioculturais. Geneticamente, não existem. Os genomas de um sueco e de um africano podem ser mais parecidos que o genoma de dois suecos. A genética moderna provou que nós não somos iguais, mas somos igualmente diferentes".
Antonio Cícero, poeta: "Cada pessoa tem sua própria raça".
São frases excelentes, né, Edson? Aprendi muito fazendo esse documentário. E também fiquei confuso. A questão sócio-racial no Brasil é um enigma de esfinge. Complexa como a dualidade Pelé/Edson, corpo/alma, preto/branco. Decifra-me ou te devoro.
Agora, acho que sobre essa ou qualquer outra grande questão humana não existem palavras mais conclusivas do que aquelas que, no Giant Stadium de Nova York, para milhares de torcedores, você não teve vergonha de dizer. E que eu também não posso ter. "Love. Love. Love."