Conversamos com Marcelo D’Salete sobre Cumbe, uma das HQs mais elogiadas de 2014
Provavelmente tudo o que você aprendeu na escola sobre a escravidão no Brasil está errado (ou incompleto, ou tendenciosamente mal-contado). É nessa lacuna que o aclamado “Cumbe” (2014), de Marcelo D’Salete, poeticamente se encaixa. Embora não seja nenhum iniciante - o autor tem no currículo “Noite Luz” (2008) e “Encruzilhada” (2011), Marcelo D’Salete ainda pode ser considerado uma das grandes revelações do quadrinhos nacional. Dono de um traço extremamente elegante, em “Cumbe”, o autor revisita a história de seus antepassados, africanos escravizados no Brasil.
Como quadrinho, "Cumbe" é recheado de cortes rápidos de câmera, planos abertos e close-ups coisa de roteiro pra cinema. O texto, econômico, se faz desnecessário diante da beleza criada a nanquim. As histórias contadas no livro, de resistência e insubmissão, focam em dramas pessoais, humanizando personagens que só estamos acostumados a ver em outras obras sobre o período como personagens secundários de histórias de personagens brancos. Revelando a necessidade de rever toda a historiografia do período escravocrata, sob a ótica negra. “Deixar essas narrativas apenas para que outros grupos contem sua versão dos fatos é uma violência simbólica enorme”, explica o autor.
Trip conversou com D’Salete, que recusa o título de “cartunista negro”, como já foi chamado em outras resenhas. De fato, o artista merece ser aclamado como um dos maiores do cenário do quadrinho nacional da atualidade.
Porque Cumbe, para o título? O que ela significa, mais do que uma simples tradução de Sol.
Cumbe tem origem no quimbundo e significa sol, chama e fogo. A palavra também é usada para quilombos em alguns países da América Latina. Além disso, está relacionada a simbologia de antigos reis na região do Congo e Angola, expressando energia e força. Considerei o termo apropriado para o livro pois aproxima-se de força e resistência. Cumbe não é uma visão suavizada da escravidão no Brasil, é permeado de relações de desigualdade, violência, luta e insubmissão.
Como foi sua pesquisa para Cumbe?
Inicialmente, surgiu a partir de pesquisas em 2006 sobre o Quilombo dos Palmares. Depois disso mergulhei em livros sobre escravidão no Brasil. Embora tenha lido muitas obras sobre escravidão em seu sentido mais estrutural, me interessei principalmente por relatos de casos envolvendo homens e mulheres escravizados que foram parar em registros policiais ou judiciais. Isso trouxe novas possibilidades de apresentar esse período nas histórias em quadrinhos a partir da perspectivas de personagens negros.
De alguma forma a pesquisa mudou sua visão de si próprio (falando da questão racial, obviamente)?
Os meus trabalhos de quadrinhos, e principalmente o livro Cumbe, estão muito ligados as minhas leituras. Com certeza a pesquisa e produção de cada um deles alterou a minha percepção dos fatos. Meu interesse sobre cultura negra é antigo, tem origem na influência do rap e hip hop no final dos anos 1980. O livro Cumbe, nesse sentido, é fruto de discussões presentes desde minha adolescência. Vale dizer que a pesquisa sobre o período da escravidão acabou me mostrando que, apesar de toda movimentação da história, ainda permanecem muitas formas de exclusão próprias do período colonial em nosso país.
A questão da miscigenação a base de estupro é mostrada em mais de uma história. Essa é uma questão central?
Essa é uma questão interessante. No período colonial, com a escravidão, a violência direta ou implícita contra a população negra era algo estrutural. Negros e brancos interagiam em condições desiguais, mesmo quando o negro fosse livre. A violência entre homens e mulheres foi ainda maior. No livro está presente a situação de estupro na história Malungo, mas também existe uma outra forma de relação mais ambígua em Sumidouro. Apesar disso, todas são formas que compreendem violência, já que não são pessoas em condições sociais de igualdade. Não diria que todas essas relações foram fruto de estupro, mas seria equivocado dizer que essa prática não era a principal forma de relação durante aquele período.
A crítica costuma dizer que você é o melhor quadrinista negro da atualidade. Isso te incomoda? Tem um racismo implícito aí?
Não considero correto, quando falamos de artistas, resumir uma produção apenas em melhor ou pior. Sou um artista negro e sei que existem outros diversos artistas negros criando e produzindo obras. Cada um deles tem suas singularidades. O Maurício Pestana, por exemplo, tem um ótimo trabalho de charges. A sua crítica é direta e importante em explicitar o racismo brasileiro. Ele encontrou um caminho próprio. Precisamos de artistas negros em diversas áreas, pensando em sua história e em outras narrativas também.
Se tem algo que precisa ser reescrito é a história da escravidão do Brasil, contada por brancos. Você como autor, se sente um pouco nessa missão de reverter isso?
Comecei a abordar esse tema nas minhas histórias porque considerava isso ausente de muitos trabalhos de quadrinhos. Foi um modo de fazer algo que gostaria de ver como leitor. Considero importante que autores negros possam refletir sobre sua história. Deixar essas narrativas apenas para que outros grupos contem sua versão dos fatos é uma violência simbólica enorme. Precisamos de novas perspectivas sobre a história e não é possível fazer isso excluindo parte da população que foi marginalizada. Esse foi um caminho que escolhi. No entanto, pretendo explorar mais temas para além desse universo.
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