Eles não querem um homem como eu. Preferem que eu seja escondido e viva na semi obscuridade. Como iriam querer? Eu sou a prova viva de que eles estão errados. Quando a polícia entra na favela ou encontra jovens, pretos e pobres pelas "quebradas", não têm dúvidas: é bandido, fogo neles! Invadem e atiram em qualquer coisa que se mova dizendo que a lei (precisa de ordem judicial para invadir as casas) não se aplica ali porque favela não tem casa. E quando o povo filma, fotografa os assassinatos e há prisão dos culpados, eles nem se preocupam: alegam que estavam "cumprindo a lei" e houve reação. Isso mesmo com as gravações a desmenti-los. Têm certeza de que o júri os absolverá. Porque?
Porque esta sendo martelado na cabeça das pessoas por esses pseudo programas policiais da TV, jornais falados e escritos todos os dias que prender não adianta, que daqui a pouco o sujeito preso pode sair. Que é melhor matar logo porque quem sai da prisão não se recupera mesmo, cadeia é escola do crime, afirmam que o índice de reincidência é 75% e pedem a pena de morte. Dizem que a polícia prende e a justiça solta. Eles parecem conhecer a situação das prisões super lotadas em que não há a mínima preocupação em recuperar ninguém; o preso não fugindo esta ótimo. O homem aprisionado virou uma estaca enterrada em pé. Foi assim que começou a onda recente de linchamentos que foi culminar no assassinato da professora inocente do que lhe acusavam.
Dai, quando um sujeito consegue passar pela opressão total, cruéis violências, torturas mais brutais, humilhações pungentes, terror, horror e ainda assim sobrevive à pena máxima (30 anos) do país em seus calabouços infectos e lotados; e sai lúcido, crítico, procedendo corretamente, conquistando uma profissão, um espaço cultural e convivendo com todo tipo de pessoa numa boa há mais de 10 anos, é um subversivo. Alguém que subverte os padrões de criminalização desde sempre adotados.
Não se esperava por esta atitude; não me conheciam, viam em mim apenas mais um ex-preso, com destino traçado, como da maioria dos que saem da prisão: morrer ou voltar. Exatamente por isso quando sai da prisão fizeram sensação. Fui entrevistado por todos os programas de entrevista televisivos, rádio, revistas e jornais. Virei celebridade por alguns momentos. Mas jamais deixei me enganar. Eles me levantavam bem lá em cima para que minha queda fosse mais rumorosa. Esqueciam-se que eu continuava sendo o mesmo ser humano com vontade imperiosa que havia vazado de seus cárceres de ferro. Não imaginavam que eu havia temperado minha vontade como ela fosse a espada que defenderia minha vida. Quiseram me dar todo tipo de rasteira. Esperavam que eu caísse fragorosamente, como caiu Fernando (do filme "Pixote") e como caíram todos os outros tidos por "modelos".
Eu continuei fazendo o que aprendi a fazer na prisão para as coisas dessem certo: estudando, pesquisando, ensinando e escrevendo. Melhorei minha fala, dominei a timidez, publiquei livros, crônicas, contos, poesias e textos. Conquistei pessoas, fiz amigos de verdade, formei uma Oficina de Leitura e Escrita, escrevi e escrevi sem parar. Sou obrigado a me manter em uma disciplina econômica rígida. Há épocas (e longas épocas) em que não saio de casa porque sair significa gastar e eu não podia gastar. Haviam os filhos e uma estrutura a sustentar. Eu lavo minha roupa, faço minha alimentação, limpo meu banheiro, só ando de transporte coletivo, faço a faxina da casa toda semana, espero minha vez nas filas do posto de saúde, do ônibus e em todos os lugares que necessário for. Aos poucos fui incorporando a vida do cidadão comum.
Quis entrar nas escolas para falar aos adolescentes sobre o que vivi, expor as armadilhas da cooptação criminal, desromantizar o crime, desglamourizar a prisão, mostrar o sofrimento, a dor, assim com muita verdade e coração. Consegui em algumas por empenho de alguns professores e alunos, jamais das escolas. Fui barrado em quase todos meus projetos. Consegui levar minha Oficina de Leitura e Texto em muitas Penitenciárias, na Fundação Casa, mas só pelo meu empenho em buscar patrocínio e luta intensa por meios de entrar. Foi minha a idealização do Guia Dicas produzido pela Secretaria dos Assuntos Penitenciários. É um guia de endereços e dicas importantes distribuído para quem sai da prisão. Tenho uma peça "A Passagem", que desmascara o fato que no Brasil não há nenhuma lei que obrigue o Estado a apoiar o egresso de seus presídios em seu reingresso na sociedade.
Mas ainda esta em tempo. Quem sabe mude alguma coisa com as eleições, não é mesmo? Não tenho muita esperança.
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Luiz Mendes
25/08/2014.