Um relato do primeiro contato com o que sobrou de Bento Rodrigues, em Mariana, por quem está acostumado a cobrir guerras e conflitos internacionais: ”uma tragédia no quintal de casa”
Nos últimos meses, acompanhei, em reportagens para o programa Que Mundo é Esse?, a guerra ao Estado Islâmico, no Iraque, e a debandada de refugiados para a Europa, vindos do Oriente Médio e da África. Achei que minha cota de desgraças cometidas pelo homem estava encerrada por esse ano. Me enganei, e acabei me deparando com uma tragédia no quintal de casa: o desastre causado pelo rompimento da barragem da mineradora Samarco — de propriedade da Vale, que não é mais do Rio Doce, e da anglo-australiana BHP. Ocorrido no dia 5 de novembro, entrou pelos noticiários e foi logo ofuscada pelos terríveis ataques em Paris.
Com a falta de informação e muitas dúvidas no ar sobre o que realmente estava acontecendo em Mariana, dez dias depois do rompimento da barragem de Fundão, eu e meus companheiros, Felipe UFO e Rodrigo Cebrian, resolvemos ir até lá entender melhor o desastre. Sem muito preparo ou planejamento, pegamos um carro 4x4, alguns mantimentos e umas barracas de dormir, e fomos para Minas Gerais.
Depois de viajar quase 400 km, chegamos às redondezas da cidade debaixo de chuva pesada. Ingenuamente acreditamos que o temporal pudesse ser bom: "Deve ajudar a limpar e escoar a lama, né?" No dia seguinte descobriríamos que não.
Pela manhã, visitamos o centro de distribuição de doações e nos surpreendemos com tanta solidariedade. Eram tantas — três galpões lotados — que eles já não podiam mais receber ajuda, pela falta de espaço. Tudo muito organizado: as vítimas pegavam somente o que precisavam, em ordem e com calma, tal qual o exemplo dos japoneses durante o terremoto de 2011.
Seguimos então para Bento Rodrigues, primeira cidade afetada pelo rompimento da barragem. Originalmente, existiam dois caminhos para se chegar até lá. No primeiro, uma mensagem escrita em uma lona improvisada dizia que a cidade estava interditada por tempo indeterminado e que não era aconselhável seguir em frente. Nossa curiosidade foi maior e ignoramos essa sinalização. Afinal, viajamos até lá justamente para ver pessoal o que não estava sendo mostrado na TV.
A estrada acabou depois de uns 20 km. Minha sensação era a de estar diante do resultado de uma erupção vulcânica. Em meio ao cenário de desolação, um solitário funcionário da Samarco nos avisa que não poderíamos seguir adiante. A recomendação era desnecessária: a lama havia tomado a estrada, impedindo totalmente a passagem. Circulamos um pouco e tentamos cruzar uma parte da estrada a pé. Aqui eu descobri a verdade sobre "a chuva forte limpar lama”.
Que lama? Não tem lama, meu amigo. A lama virou um "concreto".
Foi assustador andar por cima daquilo. Minha primeira dimensão real do tamanho da merda que tinha acontecido. O que me surpreendeu foi a sensação do funcionário da Samarco: a pessoa tinha tantas dúvidas quanto a gente. Aquele desastre foi tão impactante que choca qualquer um.
O funcionário pediu para não ser entrevistado ou fotografado. A crise tá aí, ninguém quer perder o emprego. Mas ele teve uma sorte em 2015: deixou a barragem 15 minutos antes dela se romper.
Foi assustador andar por cima daquilo. Minha primeira dimensão real do tamanho da merda que tinha acontecido.
Voltamos e seguimos pelo outro caminho que, teoricamente, nos deixaria em Bento Rodrigues. Antes, porém, uma outra barreira ocupava a estrada. Não era de lama, mas de cones, carros, armas e sirenes. Era a Polícia Militar de Minas Gerais. Fomos barrados.
“Mas por que não podemos ir até lá, senhor policial?”
“Porque precisa de uma autorização do Comando Maior da Polícia e Bombeiros”, disse ele.
Ok, pensamos. O lugar deve ter seus riscos, não dá pra abrir para qualquer curioso. Onde, então, poderíamos falar com o Comando Central? A resposta foi surpreendente:
— “A base operacional da polícia está dentro da sede da Samarco."
Dentro da sede da Samarco? Como um órgão público que deveria estar investigando o órgão privado responsável por esse desastre está dentro dele?
Sem entender, seguimos até a Samarco.
E fomos barrados na porta.
— “Vocês não podem entrar sem autorização de alguém da Samarco”, disse o recepcionista.
Ou seja: para entrar em Bento Rodrigues você precisa da autorização da Polícia, que está dentro da Samarco, e para entrar lá precisa que uma pessoa da empresa autorize.
Faz sentido?
Mas a gente também estava armado. Ligamos nossas câmeras, começamos a filmar e logo a história na recepção mudou. Câmeras são armas poderosíssimas. Foram quase duas horas de espera, depois da assessora de imprensa da Samarco nos atender com muita simpatia, para finalmente libertarem os bombeiros lá de dentro. Eles foram prestativos e, no dia seguinte, nos levaram até Bento Rodrigues através da dura barreira dos cones.
O primeiro contato com o que sobrou do povoado foi de um impacto visual impressionante, surreal: um tsunami de lama com rejeitos de minérios, um acidente catastrófico. Não dá para ter noção do tamanho da destruição. A lama chegou a uma altura de 15 metros enquanto descia vale abaixo arrastando tudo. O prejuízo financeiro e a destruição da cidade são coisas que o dinheiro ainda pode trazer de volta, e os responsáveis por isso devem pagar pelo crime que cometeram. Mas o impacto ambiental é imensurável – vai ser longo e doloroso, para a natureza e para muitas outras pessoas que ali viviam. E, sem dúvida, o resultado mais triste foram as mortes.
Visitamos também a barragem de Germano. A Samarco já admitiu que há riscos altos dela também se romper, o que pode piorar muito o problema, já imenso. A barragem que se rompeu, a Fundão, tinha aproximadamente 63 milhões de metros cúbicos de rejeito minerais. A lama de Germano tem mais de 200 milhões. É impressionante ver uma barragem de perto, eu particularmente nunca tinha visto. Mesmo uma em funcionamento já é uma agressão ao meio ambiente: são quilômetros e quilômetros de nada. Um deserto de lama sem vida.
Durante nossas filmagens, conhecemos um jornalista da TV estatal chinesa que levantou uma questão muito curiosa, que não tínhamos visto ninguém ainda comentar: como, depois de uma catástrofe dessa dimensão, as operações da Samarco seguiam normalmente? Será que não seria o momento de parar com tudo, rever todos os processos e com isso evitar uma nova tragédia e mais vítimas?
Vai lá: veja os videos dessa viagem em base1news.com.br