Compulsão por ter

Luiz Mendes fala da necessidade dos homem de sempre querer e ter mais

 

 

Depois de um ano de castigo em cela forte, fui para cela comum. Poucas vezes fiquei tão feliz. A janela em frente à dos companheiros e a abertura para a galeria bastavam. A ausência dos outros era o pior dos infernos. Iniciei-me então na leitura e na escrita. Mas faltava algo e eu não sabia. Já liberado para o convívio com outros presos, conversei até cansar. Deu até cãimbra na língua. Lutei quatro anos por um trabalho na prisão. Acumulei serviços, inventei atividades próximas a psicólogas, advogados, médicos, professores. Fui o primeiro colocado no vestibular da PUC e o primeiro preso no Estado a frequentar a faculdade.

Tornei-me escritor e invadi casas e mentes com minhas histórias. Os meios de comunicação vieram me procurar para me entrevistar na prisão. Abri a alma. Falei de minha busca desesperançada por liberdade e do sonho de ser escritor. Fui ouvido. Quando já não havia mais esperanças de ser livre, abriram os portões e me colocaram fora. Pronto, lá estava eu de posse da tão sonhada liberdade. Mas isso instantaneamente tornou-se pouco. Eu precisava desesperadamente de muito mais.

O ditado "se você der o pé, a outra pessoa vai querer a mão" explica. É natural querer a mão depois de conhecer o pé. É da condição humana. O homem é uma liberdade a ser sempre escavada na rocha bruta do cotidiano. Vamos sempre precisar de mais.

Confundimos "ser" com "ter". Ser livre é valor máximo e irredutível. Sabemos que teoricamente podemos comprar um shopping inteiro. Mas ficaremos presos ao shopping e continuaremos insatisfeitos. Aí compraremos outro shopping, e outro, e outro... Daqui a pouco teremos uma rede de shoppings para nos prender ainda mais à nossa insatisfação.

Sacrifício suficiente

Essa é a orientação de nossa cultura. Percebo sua ação em mim. Saí da prisão precisando de muito pouco: roupas, documentos, alimentação, afeto e espaço. Pouco depois já queria roupas de marca, guloseimas e coisinhas gostosas. Desejava todos os afetos do mundo e qualquer espaço era pouco. Não sabia dirigir. Mas a compulsão por "ter" me pressionava a ponto de quase comprar carro, sem ter como mantê-lo ou saber usá-lo.

Meu sonho sempre foi ser escritor. Tenho livro traduzido e publicado na Rússia e quero que isso ocorra em outros países. Estou assinando contrato para publicar mais um, desta vez de contos. Acabei de deixar um livro de poesias para edição e estou finalizando a revisão de outro autobiográfico. Tenho uma peça teatral para a qual estão captando recursos. Vou fazendo. Amanhã farei tudo novamente.

Escrever é me esparramar. Parecido com jogar papel picado dos edifícios. A antropologia mostra que os índios eram felizes. Não possuíam nada além de armas e ferramentas e por isso viviam livres. Segundo um antigo pensamento, viver é como estar em cima de uma ponte, impossível fazer morada. Acrescento que estamos condenados a deixar tudo e a seguir adiante.

*Luiz Alberto Mendes, 56, é autor de Memórias de um sobrevivente, sobre os 31 anos e dez meses que passou na prisão. Seu e-mail é lmendesjunior@gmail.com

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