Só sairemos desse estado de coisas se estivermos juntos, lutando para que opressões, repressões, censuras, coerções e distorções sejam eliminadas
Eram 5 e meia da manhã quando entrei no elevador arrastando uma mala de mão. Do lado de fora, o céu ainda escuro me fez lembrar que escolhi viver como jornalista, entre outros privilégios, para não precisar acordar cedo (e também para poder continuar a me vestir como um menino de 12 anos, mas principalmente para não precisar acordar cedo). Só que alguma coisa saiu do roteiro original e lá estava eu, antes de o sol nascer, indo para o aeroporto de Guarulhos embarcar para três dias de trabalho no sertão de Fortaleza. Cambaleante, entrei no táxi e, em pânico, percebi que meu condutor não pararia de falar durante os quase 25 quilômetros que nos separavam do aeroporto.
Como não estava a fim de parecer chata, resolvi que acordaria a metade de mim que ainda dormia e prestaria atenção nas coisas que ele dizia. Carlos reclamava da cidade, dos buracos, dos motoristas pouco atenciosos, da falta de educação geral. Barba por fazer, camisa amassada, olhos vermelhos, tinha a aparência de um homem exausto. Estava trabalhando, me contou, há 16 horas sem parar. “Preciso pagar as contas”, disse. “Não tem outro jeito, tem que ser assim.”
Em seguida, começou a reclamar de Temer, da corrupção, da impossibilidade de sonhar com uma vida melhor. Explicou que não estava mais conseguindo colocar comida na mesa para os cinco filhos, ou quitar todas as contas, ou prover uma vida minimamente decente a eles, e que se sentia muito cansado. Eu ia balançando a cabeça, concordando com tudo, até porque não há como discordar desse tipo de indignação e de drama. Estávamos quase chegando quando, do banco de trás, inclinei meu corpo para a frente, coloquei minha mão esquerda em seu ombro e disse o que me passou pela cabeça: “O sistema é feito para nos esgotar, isolar e depois nos culpar por todas as falhas que são na verdade de um arranjo econômico cruel, injusto e perverso. A culpa não é sua”.
Nessa hora Carlos começou a chorar. Sem saber como agir, olhei para a janela e vi o sol nascendo, uma cena que sempre me emociona. E então eu comecei a chorar. “Se você não parar de chorar eu não vou conseguir parar”, ele disse. “Mas foi você que começou e eu agora não vou conseguir parar tão cedo”, eu disse em prantos porque não sei chorar como adultos choram. E seguimos assim, aos berros, até a porta do aeroporto.
Carlos e eu nos despedimos, eu disse a ele que tudo ficaria bem, porque às vezes é apenas isso o que precisamos escutar de um estranho, e que escaparíamos desse estado de coisas que nos consome e devora. Anotei meu e-mail num pedaço de papel, entreguei a ele e entrei no aeroporto.
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A VERDADEIRA LIBERDADE
Mas o que eu gostaria de ter dito a Carlos se tivesse mais tempo é que uma sociedade que se baseia na acumulação de riqueza e que define as relações humanas pela competição sem oferecer a todos as mesmas armas ou condições produz epidemias de ansiedade, angústia, depressão, alcoolismo e solidão. Que se trata de um sistema que nos convence de que se não temos dinheiro é porque não nos esforçamos, e não porque a economia está em recessão; que nos diz que se o cartão de crédito estourou na compra de alimentos é porque você não soube administrar as contas, e não porque a inflação está comendo o seu dinheiro. Que diz que se você está gordo é porque não se exercita o suficiente, e não porque a comida que seu salário pode comprar é injetada com doses extras de açúcares; e que se você não consegue se aposentar é simplesmente porque não soube se planejar, e não porque o Estado assaltou a Previdência. Gostaria de ter dito que a única liberdade que um arranjo como esse oferece é a liberdade para o capital seguir se acumulando nas mãos de poucos, e para que nós, os demais, sigamos nos endividando e, a fim de pagar todos os boletos, vivamos rompendo de um lado para o outro sem ter tempo para mais nada.
Gostaria de ter dito que é impossível que não sejamos impactados no dia a dia pelos sintomas de um arranjo social construído sobre essas bases. Que ele afeta nossas relações e nossa integridade, nos privando de coisas fundamentais, como ócio, lazer, convívio com aqueles que amamos. Que esse mesmo sistema nos diminui e nos mantém reféns de fetiches consumistas e, a fim de nos isolar, segue jogando-nos uns contra os outros, transformando diferenças em preconceitos e naturalizando esses preconceitos.
Adoraria ter dito a ele que, no corre alucinado para tentar pagar as contas e ao mesmo tempo nos culpando por fracassos que não são de nossa responsabilidade, não somos capazes de nos aprofundar em relações significativas com outros seres humanos, nem de exercer duas de nossas mais básicas condições: a criatividade e a liberdade.
Gostaria de ter dito a Carlos que, como ensinou David Foster Wallace, a verdadeira liberdade envolve disciplina, atenção, consciência, empatia, compaixão; e que só sairemos desse estado de coisas se estivermos juntos, lutando para que opressões, repressões, censuras, coerções e distorções sejam eliminadas de todo tipo de relação.
Mas não falei nada disso. Tudo o que fiz foi colocar a mão em seu ombro e dizer que a culpa não era dele, o que talvez já tenha sido suficiente. Porque num mundo a cada dia mais desigual mostrar que fazemos parte de uma mesma substância, ser capaz de olhar além do próprio umbigo, talvez baste para nos elevar a um lugar de mais significado e, por agora, não deixar que desistamos.
Créditos
Imagem principal: Leonilson
Detalhe da obra "Empregada de novela é mais chique que madame", 1991. Tinta de caneta permanente sobre papel 18 x 16 cm. Foto de Eduardo Ortega / Projeto Leonilson