O escrito que mais me toca é aquele que nos lembra de quem fomos e de quem mais queremos ser, nos lembra por que temos fogo na periquita, por que queremos o silêncio e do que é feito o amor
Um dos meus livros favoritos é A fazenda africana, em que Karen Blixen faz um relato sobre sua vida na África Oriental, no começo do século passado. A baronesa dinamarquesa, que foi para o Quênia montar uma fazenda de café e ver algo de novo no mundo, era uma mulher avançadíssima para o seu tempo.
Ela se divorciou do marido – coisa que não se fazia na época –, operou a logística da fazenda sozinha, caçava os leões que matavam seus bois e, como toda mulher, como toda pessoa, tinha sua fraqueza: se apaixonou por um homem que vivia de safáris e que a buscava para passear de avião.
Os escritos deixados por Karen me fazem lembrar de coisas nas quais acredito, no vinho em taça de cristal, em alimentar os homens que eu mais amo... Faz-me lembrar que dá para se apaixonar por alguém através dos livros que ele tem na estante, faz-me lembrar do prazer tão singular de um cerrado aberto, plano e vazio, faz-me querer aprender a pilotar avião.
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Isso é o que as palavras fazem, te transformam – abrem portas para você e explicam umas paradas, te ensinam sobre diferentes mundos. Isso, sim. Mas o escrito verdadeiro, o escrito que mais nos toca é aquele que nos lembra de quem somos e de quem mais queremos ser, nos lembra por que temos fogo na periquita, nos lembra por que queremos o silêncio, nos lembra do que é feito o amor.
São poucas as pessoas que você pode amar por completo. É fácil pensar no gesto, no toque suave, lembrar o calor silencioso do corpo do amado. É mais fácil se apaixonar pelo futuro de uma pessoa do que pelo passado e pelo presente.
É mais fácil ainda se apaixonar por quem a pessoa te deixa ser – por que é tão raro que a gente se apaixone pela pessoa por completo? Por que sempre andamos apaixonados pela pessoa que nós mesmos viramos através do amor?
Pergunto isso porque eu não sei. Conta pra mim, me diga, me liga, me manda e-mail, mensagem, inbox, passa em casa, me encontra na fila do supermercado, alguém, por favor, me explica o amor? Alguém me explica como pode existir uma mulher tão absurdamente apaixonante como a Maryam? Alguém me explica essa pele?
O amor é tão maleável, dá para mudá-lo com a memória, com o esforço, com os detalhes, com o tempo. Posso me apaixonar absurdamente pelas mãos de uma pessoa, pelo vocabulário, pelo olhar. Mas me apaixono sempre com confiança absoluta em um futuro nebuloso.
Créditos
Imagem principal: Autumn Sonnichesen