Clube da Esquina, Tim Maia, Michael Jackson e milhares de LPs abandonados misteriosamente numa rua de São Paulo
Passarim, de Tom Jobim, pousa sua bossa no meu 3x1 Gradiente neste momento. Ele foi encontrado em meio a milhares de discos que foram despejados na esquina da Rua Bruxelas com a Rua Capital Federal, no Sumaré, em São Paulo, nesta quarta-feira (4 de julho). Na mochila, capturei ainda uma coletânea Programa Especial Vol. 1, lançada em 1979, com clássicos de Tim Maia, Hyldon, Cassiano e Luiz Melodia, e o álbum Encontros e Despedidas, do Milton Nascimento, de 1985. E mais Maria Bethânia, Leila Pinheiro, Ivan Lins, Adriana Calcanhoto, um disco do ex-lateral esquerdo Júnior e várias trilhas de novelas, num total de 26 LPs que neste momento estão sendo limpos, avaliados e ouvidos.
Foi pelas redes sociais que começaram a pipocar diversas fotos e vídeos com milhares de discos abandonados na rua, sem dono, sem lei, todos à espera de um novo lar. Ninguém sabia ao certo o que estava acontecendo, apenas que eles estavam disponíveis. Teorias começaram a ser construídas. O cara morreu e a família jogou tudo fora. Foi um carroceiro que deixou. Coisa de briga de casal. Entre outros causos foram e continuam a ser ditos. “Parece que a casa foi alugada e o proprietário está se desfazendo das coisas que estavam lá dentro”, conta uma comerciante vizinha ao local. Segundo ela, os LPs e compactos foram deixados na calçada na quarta à tarde, e as sobras foram recolhidas nesta quinta-feira por um caminhão.
Muita gente pode não entender, mas é como se estivessem distribuindo dinheiro. Alguns dos LPs largados ali, em bom estado, valem centenas de reais e, depois de uma boa garimpada, era possível encontrá-los. Não demorou muito para os DJs e colecionadores despencarem para o endereço em busca dum disquinho grátis.
Minha vitrolinha reproduz neste momento “Formigueiro”, forró cantado por Tim Maia numa coletânea de 1984 que reúne Ivan Lins, Gilson Peranzetta e Vitor Martins.
Cheguei por lá umas 22h30 e seguramente não era o primeiro a ter aquela ideia. Os discos, muitos deles já quebrados, destruídos, meio molhados, meio queimados, estavam ali sendo “atacados” como o tradicional bolo do aniversário de São Paulo servido no bairro do Bixiga. Era só preciso um pouco de coragem e um recipiente para desfrutar. O pessoal foi se avisando, encostando com seus cases.
No meio do caos, o músico Márcio Werneck ergue orgulhosamente a mão direita portando o primeiro volume do Clube da Esquina, de Milton Nascimento e Lô Borges. O álbum, que aparenta estar em bom estado, custa por aí algumas centenas de reais. “A gente tava falando de discos raros, comentamos do Clube da Esquina e eu achei. Eu dei pulos de alegria na hora”, ele comenta. “Achei ainda o Autobahn, do Kraftwerk.” Com uma visão quase mágica – diria que compartilhada por muitos que presenciaram a cena –, Werneck decreta: “Foi um barato aquela visão. Era como se tivesse rolado uma chuva de vinis, uma coisa maluca que só poderia acontecer num filme”.
“Quando vi uma foto, corri pra lá”, conta o DJ e vendedor de discos Peba Tropikal, que encontrou, em meio ao caos, dois discos da explosiva parceira de Elizeth Cardoso com o Zimbo Trio, um do Jackson do Pandeiro, entre outras coisas. Ele dá seu atestado sobre o garimpo. “Foi muito divertido ter ido. Acho que foi uma coisa meio verão da lata, coisa que só acontece uma vez a cada tempo”. Os ouros estavam ali. Bastava cavar.
“Magrelinha”, do Luiz Melodia, ganha a sala aqui de casa neste momento. O disco, que tá com uma pontinha levantada e um pouco empenado, roda muito bem obrigado, mas é um dos que precisarão passar pelo departamento médico antes de se juntar com o resto do grupo.
“Eu peguei uns 100”, diz a DJ e colecionadora Nat Jakovac. Ela, que, como todos que estiveram lá, se emocionou com o garimpo grátis, encontrou uma coletânea com vários hits do Paulo Diniz, Adoniran Barbosa, Marisa Monte, Hermeto Pascoal, Toquinho e Vinícius, Emílio Santiago, Michael Jackson – o clássico Bad –, Supertramp, Aretha Franklin e mais um sem fim de coletâneas. Ela também tem sua teoria sobre o ocorrido. “Pelo fato de ter muita cinza e capa molhada, era evidente que tentaram destruir os discos.” E comemora o bazar beneficente inesperado: “A melhor coisa foi terem colocado eles numa esquina de um bairro [o Sumaré] com muitos músicos e artistas, inclusive perto da antiga MTV, pois, assim, pelo menos muitos discos foram salvos e tiveram um final feliz”.
Termino este texto e vou direto cuidar das novas aquisições. Estou escutando neste momento uma versão meio funk da canção “Fandangueira”, apresentada pelo grupo Pentagrama. É o tipo de coisa mágica que só acontece em garimpos. O disco que tem esta faixa se chama Gauchissimo Nº 2 e tem uma capa que mais parece uma foto de churrascaria. Sem ouvir, sem ter ideia exata do que tem ali, eu jamais traria ele para casa. Que sorte a minha.
No início da madrugada já tinha gente tomando uma brejinha, batendo papo, mas ainda muita gente incrédula com o fato de milhares de discos estarem jogados numa esquina do Sumaré. Os mais jovens talvez nem entendam tal animação, sem problemas. Imagine algo que você goste muito, colecione e tenha muito carinho. E agora imagine isso ao seu alcance de graça.
É bem verdade que o sentimento de euforia deu seus titubeios. O designer multimídia, filmmaker e MC Oga Mendonça, que foi lá dar um confere na bagunça, deu seu parecer que mistura sensações. “Eu, primeiro, fiquei eufórico. No caminho, fui pensando nos tesouros que eu iria encontrar e tentando entender os motivos da pessoa se desfazer disso tudo, mas chegando e fuçando foi me dando uma tristeza, porque a maioria dos artistas que eu vi lá eram pequenos, pareciam ser independentes, meio desconhecidos... E aí eu fiquei pensando na minha caminhada na música, na caminhada de tanta gente que bota tanto sonho ali e a gente vendo os sonhos dos caras sendo jogados na rua, sendo pisados.”
Foi realmente foda ver Chico Buarque, Ney Matogrosso, Michael Jackson, Yes, Lupicínio Rodrigues, Jacob do Bandolim e outros tantos nomes impossibilitados de resgate, de uma nova chance. Mas, por outro lado, foi incrível acessar discos que ainda não estavam em nossas coleções, e poder compartilhar – mesmo que por poucas horas – música, conhecimento e discos.
Há quem diga que vai rolar uma festa só com os achados da Rua Bruxelas. Há quem tenha voltado pra casa com o porta-malas lotado de música, há quem tenha se divertido e também quem tenha se decepcionado. Houve quem encontrasse por lá um LP que procurava há muito tempo, e quem ficasse surpreso com as coisas que encontrava. Mas há, acima de tudo, uma nova lenda na cidade de São Paulo.
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