Arqueóloga da música

por Luara Calvi Anic

A brasileira Priscilla Cavalcante é uma digger. Seu trabalho é gastar horas em lojas de discos buscando canções perdidas, ou que nunca tiveram seus minutos de fama, e repassá-las para DJs no mundo

Nem todas as músicas que já foram gravadas estão na internet. Com essa certeza, uma turma gasta tempo e dinheiro em lojas de discos do Brasil e do mundo buscando faixas esquecidas e que não brilharam na época em que foram lançadas. Eles são os crate-diggers, e a cearense Priscilla Cavalcante tem essa rotina como profissão.

Aos 39 anos e morando fora do Brasil há mais de duas décadas, ela é especialista em encontrar hits em potencial que, ao caírem na mão de DJs, embalam pistas mundo afora. “Minha fórmula para essa seleção é sempre comprar os discos que gosto, que eventualmente eu possa vender e que, se não vender, vão ficar pra mim”, diz à Tpm. Já compraram com ela nomes como o inglês DJ Harvey, uma lenda da dance music.

Faz sentido Priscilla confiar no próprio ouvido para montar seu acervo. Além de ter crescido com um pai colecionador de vinil, na adolescência ela frequentava festas de miami bass (subgênero do electro, popular nos anos 80 e 90), em Fortaleza. “Comecei a sair na noite aos 14 anos. Na época, acontecia um evento gigante em galpões do subúrbio chamado Agito Jovem. Lembro de escutar aquele beat em uma festa do outro lado da rua da minha avó, pular o muro e ir atrás da bateria eletrônica!”, lembra. Com o tempo – um tempo sem internet – virou promoter, distribuía flyers e convidava DJs de todo o Brasil para tocar em suas festas.

Em 2000, montou o duo Forma Noise com o multi-instrumentista e ex-marido Dustan Gallas (que tocou com o Cidadão Instigado). Produzindo música eletrônica com batidas brasileiras, a dupla lançou um disco pelo selo holandês Disco Voador. Na sequência, se mudaram para Amsterdã. Uma versão da dupla de Insensatez, de Tom Jobim, saiu na coletânea Bossatronic (2001) e marcou o verão europeu daquela época. Foram 20 anos vivendo na Holanda. Hoje, ela mora em Miami com seu filho de 6 anos do segundo casamento (a primogênita, de 19 anos, continua em Amsterdã). Priscilla não se considera DJ, mas eventualmente toca com o codinome HOP (House of Pris). Até porque, vale lembrar, um digger não necessariamente assume as pick-ups.

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Há três anos, ela passa a maior parte do seu tempo em loja de discos e faz o que chama de private diggings, ou vendas privadas. “Quem sabe que eu tenho discos me procura. A gente senta, ouve música, toma uma café. É uma troca, e eu também conheço artistas novos nesses encontros. Não tem nenhum tipo de pressão para comprar, mas sempre acaba em venda.”

Em geral, seu acervo costuma ter 70% de world music e 30% de vinis brasileiros. Priscilla é uma digger com repertório e espírito de compartilhamento. “Se você só descobre, ouve e guarda qual serviço está prestando para perpetuar essas músicas? Você é apenas um apreciador. É uma alegria descobrir coisas novas que não foram valorizadas antes. Encontrar, recontextualizar e trazer para o agora de uma forma relevante.”

Para garimpar o passado, Priscilla sabe que é preciso estar conectada com o presente. Este mês, inaugurou com dois amigos o CON_plex, um espaço de arte e música em Miami. Durante a semana de abertura, uma série de DJs mulheres apresentaram suas pesquisas. Esse é também seu jeito de responder ao fato de que ainda são poucas DJs tocando em festivais ou buscando discos como ela. “É, sim, um ambiente masculino. Não é fácil, as pessoas têm resistência e ficam tentando entender o que eu estou fazendo ali quando não tem o que entender. Não é que te menosprezam, mas se intimidam um pouco. Tento agir com normalidade como se isso não fosse uma questão.”

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E, segundo seus ouvidos, a próxima grande tendência nas pistas é um gênero da  música antes menosprezado. “Estou prevendo uma grande onda do freestyle brasileiro melódico. Tipo Latino, Patricia Marx, Tony Garcia”, aposta. Isso porque, ela lembra, vivemos a era dos memes, do ugly fashion. “Essa geração se coloca nas piadas, usa roupas que antes achava ridículas. E isso inclui a música. Pegam o que na nossa época era considerado ruim e trazem de volta.”

É possível, porém, encontrar Latino e Patricia Marx no Spotify. “Mas eu procurei uma faixa da Gretchen que está num álbum que não é famoso e não achei. O passado dela, as coisas mais antigas, não estão lá!”, revela Priscilla. Consulte então sempre um digger se quiser conhecer Gretchen, e outras raridades, em toda a sua essência.

Sem espirros
Priscilla Cavalcante fez um digging on-line especialmente para a Tpm. Chamada de África Dançante, a playlist tem produções que vão dos anos 1970 até 2018, em estilos musicias como afrobeat, afro-funk, afro-disco, funaná, soca, highlife. Aperte o play:

Créditos

Imagem principal: Divulgação

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